Como um banco pode quebrar fazendo o investimento mais seguro do planeta?

Entenda os erros de estratégia que levaram à quebra do SVB

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São Paulo

O Banco do Vale do Silício (SVB) tinha muito dinheiro aplicado em títulos do governo americano e similares. Como pode ter quebrado fazendo o investimento mais seguro do planeta, emprestando dinheiro ao Tesouro dos Estados Unidos, em tese com risco zero de calote? É o que muita gente se pergunta.

O SVB não quebrou apenas porque tinha um excesso de dinheiro em títulos do Tesouro americano etc. Além do mais, o investimento em títulos, do governo dos Estados Unidos ou outros menos reputados, tem risco, sim, mesmo que não seja o risco de calote explícito e direto (não pagamento, pura e simplesmente).

letras brancas svb, seguidas de flecha azul, sobre fundo preto, com vários riscos por cima
Ilustração mostra logotipo do SVB (Silicon Valley Bank) arranhado - Dado Ruvic/Reuters

O Banco do Vale do Silício entrou em crise 1) porque os títulos que possuía perderam valor (risco de mercado) e teve de vende-los (o que não pretendia fazer: queria carregar a maior parte deles até o vencimento). MAS TAMBÉM porque o banco não tinha alguma estratégia financeira para compensar essas perdas ("hedge") ou capital suficiente para cobrir eventuais perdas com esses investimentos, em situação de "estresse" (alta de juros, por exemplo). Mas tem mais.

2) O banco entrou em crise também porque a base de seu financiamento (dos recursos que captava) era composta de depósitos de clientes que não eram cobertos por fundo garantidor (ou outro seguro), mais propensos a sacar dinheiro em caso de rumor sobre a saúde do banco. Em geral, são também depositantes (empresas) que procuram alternativas melhores se o banco não remunera bem os depósitos. Não para aí.

3) O SVB entrou em crise ainda porque seus clientes (depositantes) eram parecidos, empresas "tech" e seus financistas. Isto é, havia mais risco de que passassem pelos mesmos problemas financeiros e econômicos, ao mesmo tempo, precisando sacar seu dinheiro. O mundo "tech" vem mal das pernas desde 2022. De resto, como sugerem relatos da crise, têm comportamento de manada (vivem em uma "bolha" que intensifica apreensões e estimula reações em grupo).

4) O banco, quebrou, enfim, porque não conseguiu conter o pânico detonado pelo efeito conjunto de tais problemas.

Por que os títulos que o SVB tinha perderam valor?

Os títulos que o SVB comprou perderam valor porque as taxas básicas de juros nos Estados Unidos subiram muito de março do ano passado para cá (de quase zero para quase 4,5%, no caso da taxa básica do Fed, o BC dos EUA).

Assim foi com todos os títulos em poder de bancos americanos, uma baixa total de talvez US$ 2 trilhões no valor dos ativos ora registrados nos balanços, perda calculada para o último ano. A conta que vinha circulando na mídia financeira era de perdas potenciais de US$ 600 bilhões, mas referida a balanços e juros até dezembro de 2022. Os bancos que viram seus ativos perder valor não quebraram, obviamente, embora alguns possam estar em risco.

A estimativa, ainda meio por cima, é de um ótimo, curto e recentíssimo estudo de pesquisadores americanos

Essa estimativa de perdas potenciais, ainda meio por cima, é de um interessante, curto e recentíssimo estudo de pesquisadores americanos ("Monetary Tightening and U.S. Bank Fragility in 2023: Mark-to-Market Losses and Uninsured Depositor Runs?", de Erica Jiang, da Universidade do Sul da Califórnia e mais quatro autores (grátis na internet, publicado nesta segunda-feira).

ualquer título perde valor de mercado se as taxas de juros sobem (vide explicação elementar para um caso simples no final deste texto), assim como outros ativos, aliás.

Se o investidor ficar com seu título até o vencimento e não levar calote, recebe o valor contratado (o que investiu e o rendimento, os "juros"). Se tiver de vende-lo antes, "desaplicar", perde parte do capital se os juros do mercado de títulos tiverem aumentado (ou ganha, se tiverem caído).

Se a leitora tem certos títulos do Tesouro Direto (em geral de prazo mais longo e que não sejam "Selic"), poderá ter notado no seu extrato que seu investimento perdeu valor de mercado com a alta de juros. Se ficar com o título até o vencimento, receberá o que contratou.

Mas outros bancos americanos também não têm esses títulos?

Outros ativos, haveres, dos bancos também perdem valor com a alta de juros (como empréstimos para financiamento de moradias ou imóveis comerciais). Erica Jiang e os autores do estudo citado mais para cima neste texto fizeram um teste para estimar o tamanho da desvalorização desses ativos, empréstimos e títulos, nos bancos americanos, cerca de 4.800 instituições.

Segundo o estudo, o banco típico tem 42% de ativos em empréstimos imobiliários. Títulos de dívida de governos (dívida pública) e outros, como aqueles que derivam seus rendimentos de imóveis, são 22% dos ativos. Jiang e colegas verificaram que a desvalorização desses ativos em um ano foi de algo entre 10% e 11% (a julgar pela variação dos valores de mercado desses títulos em certos fundos, do primeiro trimestre de 2022 ao primeiro deste 2023).

Na média, os ativos dos bancos teriam então perdido 10% do valor. Daí vem a conta de perdas potenciais de US$ 2 trilhões (pelo menos para aquela parte dos ativos avaliada no estudo, 64% do total). Nos piores casos, em 5% dos bancos com pior desempenho, a perda seria de 20%.

Seria. Os bancos perdem apenas se tiverem de vender esses ativos. Cerca de 11% dos bancos poderiam ter perdas maiores do que o falido SVB. Mas não faliram, ao menos até agora.

Se tantos bancos têm títulos, por que o problema foi com o SVB?

Qual o provável problema do SVB, além do excesso de títulos na carteira, títulos que pretendia manter até vencimento? O modo pelo qual captava recursos, a composição de seu financiamento. Receber depósitos de clientes, depósitos remunerados ou não, é um modo de levantar dinheiro. Parte desses depósitos pode ser garantida.

Por exemplo, nos EUA, depositantes com até US$ 250 mil na conta não perdem dinheiro se o banco quebrar (são cobertos pelo seguro do fundo garantidor). O cliente que não tem garantia de que não vai perder seu dinheiro é muito mais propenso a sacar seus recursos do banco, em caso de rumor ou sinais de crise.

Segundo o estudo de Erica Jiang e colegas, os recursos ("funding") do banco mediano dos Estados Unidos são compostos em 65% por depósitos garantidos ("insured") e 26% de passivos sem garantias ou seguro, "uninsured" (depósitos de clientes e outras dívidas do banco). A relação entre passivos "uninsured" e ativos no SVB era muito alta. Isto é, o banco tinha relativamente muito dinheiro "uninsured" para devolver em relação ao total de seus haveres. Era um ponto fora da curva.

Em 5% dos bancos, o passivo "uninsured" em relação ao total de ativos era de 52% ou mais do total. No SVB, de 78%. Estava no 1% dos casos de maior risco potencial.

O SVB padecia de uma confluência de problemas, portanto. Cerca de 55% de seus ativos estavam investidos em títulos de dívida que perderam valor. Corria o risco de ter de devolver muito dinheiro (passivos inseguros), caso houvesse sinais de crise. Os saques já vinham ocorrendo, pois o grosso de sua clientela era composta de empresas inovadoras do setor de tecnologia e seus sócios financistas, que estão mal das pernas desde o ano passado. Além do mais, os saques nos bancos têm aumentado porque a remuneração dos depósitos não tem subido tanto quanto as taxas de juros no mercado.

A notícia de que o banco teve de vender títulos de sua carteira a fim de cobrir saques, com prejuízo, provocou mais medo em sua clientela, já assustada pela crise no setor, com demissões, seca de crédito etc. Sócios de seus clientes, "investidores de risco" ("venture capital") estimularam os saques, com alertas alarmistas.

Na semana final da crise, o SVB ainda tentou levantar capital (vender novas ações etc.), a fim de cobrir o prejuízo com a venda de seus títulos. Teve a assessoria do bancão Goldman Sachs. Mesmo assim não colou. Quase ninguém apareceu como comprador firme dos novos papéis. A corrida para sacar dinheiro do banco aumentou. Da quinta para a sexta-feira da semana passada, o banco perdeu quase um quarto de seus depósitos (US$ 42 bilhões). Fim.

A história da crise ou da tensão não termina aqui _bancos perdem depósitos, alguém pode ter problema similar de desvalorização de ativos como o SVB, ainda que menor. Bancos podem perder mais, com outros riscos de crédito, como no setor imobiliário comercial. A ajuda do governo deixa como herança mais algum estímulo ao risco. Etc.

Altas de juros sempre deixam mortos e feridos na finança (para não falar das pouco faladas pessoas que perdem o emprego e muito mais). Desta vez não foi diferente e o filme ainda não acabou.

POR QUE TÍTULOS PERDEM VALOR COM ALTA DE JUROS?

Um título de dívida é uma promessa de pagamento de certo valor, daqui a certo tempo. Esse é o valor de resgate do título ("valor de face"). É um tipo de empréstimo. Quem empresta o dinheiro na verdade comprou esse título, com um desconto. A diferença entre o valor de resgate e o valor descontado é o rendimento, grosso modo a taxa de juros do negócio.

Considere-se um exemplo escolar, simples. Um investidor compra um título por 100 dinheiros, com a promessa de receber 110 dinheiros daqui a um ano. Se ficar com o título até o vencimento e não levar um calote, recebe 110 e ganha 10 sobre 100.

Por um motivo qualquer, esse investidor, o credor, pode querer se desfazer do título. Pode querer vendê-lo em um dos mercados financeiros. Não terá a garantia de receber 110 dinheiros pelo título que possui (pode até vender por mais, mas também por menos).

Suponha-se que a taxa de juros exigida por investidores é agora maior, por qualquer motivo (alta da taxa básica de juros, tensão no mercado, desconfiança em relação àquele devedor etc.). Para ter um rendimento compatível com a nova taxa de juros, um novo investidor apenas comprará aquele título de 110 dinheiros com um desconto ainda maior, digamos 15 dinheiros. O preço do título cai então para 95.

A alta da taxa de juros e, por tabela, do rendimento exigido significa que o preço do título precisa cair. Quem tem títulos vê o valor de mercado de seu capital diminuir. Caso não venda aqueles títulos antes do vencimento, não tem prejuízo, na prática. Mas o valor de mercado de seu patrimônio diminui. Se tiver de vender seus títulos, por qualquer motivo, vai perder dinheiro.

O Banco do Vale do Silício (SVB) tinha muito dinheiro aplicado em títulos do governo americano e similares. Como pode ter quebrado fazendo o investimento mais seguro do planeta, emprestando dinheiro ao Tesouro dos Estados Unidos, em tese com risco zero de calote? É o que muita gente se pergunta.

O SVB não quebrou apenas porque tinha um excesso de dinheiro em títulos do Tesouro americano etc. Além do mais, o investimento em títulos, do governo dos Estados Unidos ou outros menos reputados, tem risco, sim, mesmo que não seja o risco de calote explícito e direto (o risco de crédito: de não pagamento, pura e simplesmente).

O Banco do Vale do Silício entrou em crise porque os títulos que possuía perderam valor (risco de mercado) e teve de vende-los (o que não pretendia fazer: queria carregar a maior parte deles até o vencimento). MAS TAMBÉM porque o banco não tinha alguma estratégia financeira para compensar essas perdas ("hedge") ou capital suficiente para cobrir eventuais perdas com esses investimentos, em situação de "estresse" (alta de juros, por exemplo). Mas tem mais.

O banco entrou em crise também porque a base de seu financiamento (dos recursos que captava) era composta de depósitos de clientes que não eram cobertos por fundo garantidor (ou outro seguro), mais propensos a sacar dinheiro em caso de rumor sobre a saúde do banco. Em geral, são também depositantes (empresas) que procuram alternativas melhores se o banco não remunera bem os depósitos. Não para aí.

O SVB entrou em crise ainda porque seus clientes (depositantes) eram parecidos, empresas "tech" e seus financistas. Isto é, havia mais risco de que passassem pelos mesmos problemas financeiros e econômicos, ao mesmo tempo, precisando sacar seu dinheiro. O mundo "tech" vem mal das pernas desde 2022. De resto, como sugerem relatos da crise, têm comportamento de manada (vivem em uma "bolha" que intensifica apreensões e estimula reações em grupo).

O banco, quebrou, enfim, porque não conseguiu conter o pânico detonado pelo efeito conjunto de tais problemas.

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