É possível odiar seu emprego, mas amar seu trabalho

Baixos salários, burocracia e falta de recursos podem corroer boa relação com o emprego

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Sarah O'Connor
Londres | Financial Times

Você não odeia quando uma boa teoria desmorona? O livro do falecido antropólogo David Graeber, "Bullshit Jobs" [Empregos de merda], tinha uma ótima premissa: que a economia moderna gerou um grande número de empregos inúteis e "as pessoas que fazem esses trabalhos estão completamente infelizes porque sabem que seu trabalho é uma merda".

Advogados corporativos, lobistas, gerentes intermediários –todos são inúteis e sabem disso.

Já se passaram cinco anos desde que o livro foi publicado, mas as pessoas ainda falam sobre ele, especialmente no contexto do quebra-cabeça atual sobre por que algumas pessoas deixaram o mercado de trabalho desde o início da pandemia. Os trabalhadores simplesmente se cansaram de fingir que o que eles faziam o dia todo era realmente importante?

'Bullshit Jobs: A Theory' é um livro de 2018, do antropólogo David Graeber, que postula a existência de empregos sem sentido e analisa seus danos sociais - Reprodução

O problema é que os dados não confirmam a teoria dos "empregos de merda".

Alguns anos atrás, os pesquisadores Magdalena Soffia, Alex Wood e Brendan Burchell analisaram uma série de grandes pesquisas da União Europeia sobre as condições de trabalho para ver se era verdade que um número cada vez maior de pessoas achava seu trabalho inútil.

De fato, apenas cerca de 5% dos trabalhadores em 2015 responderam "raramente" ou "nunca" à afirmação "Tenho a sensação de estar fazendo um trabalho útil". Essa proporção havia sido de aproximadamente 8% em 2005.

Ao contrário da ideia de que é mais comum encontrar empregos ruins em setores de colarinho branco bem pagos, a pesquisa descobriu que coletores de lixo e faxineiros eram mais propensos a dizer que não faziam um trabalho útil do que profissionais jurídicos e administrativos.

É possível que as pessoas estejam mentindo para si mesmas ou para as que fazem a pesquisa. Também é possível que vejam seu trabalho como "útil" em um sentido restrito, mas ainda o achem insignificante de uma forma mais profunda, que não é incluída nessa pergunta. Ou talvez a teoria esteja errada.

Mesmo que esteja, acho que Graeber apontou uma distinção importante que muitas vezes se perde: há uma diferença entre como uma pessoa pode se sentir em relação ao seu emprego e como ela pode se sentir em relação ao seu trabalho real.

Ele estava interessado na ideia de que alguém poderia ter um bom emprego, no sentido de ser bem pago e respeitado pela sociedade, mas ainda assim odiar seu trabalho. Estou interessado no inverso. Cada vez mais encontro pessoas que dizem amar seu trabalho, mas que odeiam seu emprego.

Veja os assistentes sociais que cuidam de pessoas em casa ou em instituições residenciais. Em muitos países há altos índices de vagas nesses empregos, e grande rotatividade do pessoal. Mas seria um erro concluir que o trabalho é desanimador.

Grupos de discussão com cuidadores do Reino Unido, administrados por pesquisadores da Resolution Foundation, descobriram o oposto: os profissionais falaram sobre o quanto valorizavam a responsabilidade, a autonomia e a diferença que faziam na vida das pessoas.

Uma análise recente dos dados de bem-estar no Reino Unido mostra que as pessoas em ocupações de "cuidador" têm os níveis mais altos de sentimento de que as coisas que fazem na vida valem a pena. O problema é que os salários baixos e a falta de pessoal deixam os trabalhadores muito cansados e sobrecarregados para prestar cuidados com a qualidade que desejam.

Um cuidador sênior me contou sobre uma colega júnior que teve que fazer 28 visitas domiciliares em um turno e só voltou para sua família à meia-noite. "Ela me ligou e disse: ‘Eu amo meu trabalho, mas me sinto forçada a arranjar outra coisa’."

O fenômeno não é exclusivo de empregos na base da escala salarial. Uma psicóloga do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em inglês) me enviou um email recentemente explicando que a falta de recursos impossibilitou que ela fizesse um bom trabalho.

"Sou prudente o bastante para saber que trabalhar mais para preencher essas lacunas cada vez maiores é insustentável", escreveu ela. "Então até eu, uma funcionária do NHS verdadeiramente comprometida e que ama seu trabalho, é boa nisso e tem os melhores colegas [...] estou planejando minha saída."

Ela disse que esse é um "assunto comum" em sua profissão. "Amamos absolutamente o que fazemos, mas fomos quebrados pela falta de infraestrutura, investimento e décadas de ‘fazer mais com menos’."

Baixos salários e recursos escassos não são os únicos culpados. Um mau gerente pode estragar um bom emprego da noite para o dia.

A burocracia corporativa pode fazê-lo mais lentamente, enredando as pessoas em tarefas que as afastam do trabalho que desejam fazer, gostam de fazer e foram contratadas para fazer.

Tenho certeza de que algumas pessoas são bem pagas por trabalhos de que não gostam e que não consideram importantes. Mas há mais motivos para se preocupar com pessoas na situação oposta. A boa notícia é que esse é um problema mais simples de corrigir.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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