Descrição de chapéu Banco Central

Saque de R$ 26 bi do PIS/Pasep não é 'esforço fiscal' nem reduz rombo nas contas, segundo BC

Governo projetou déficit de R$ 107,6 bi no ano, mas rombo será maior de acordo com estatística oficial

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Brasília

A medida que prevê um resgate, pelo Tesouro Nacional, de R$ 26 bilhões em recursos abandonados nas contas de trabalhadores no Fundo PIS/Pasep não representa "esforço fiscal" e, por isso, não serve para reduzir o rombo das contas em 2023, segundo entendimento do Banco Central —órgão responsável pelas estatísticas oficiais das finanças públicas brasileiras.

Na prática, isso significa que o déficit neste ano, projetado atualmente em R$ 107,6 bilhões pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), será maior aos olhos do BC. Considerando o cenário atual, o rombo passaria dos R$ 133 bilhões.

A inclusão dos R$ 26 bilhões nas estimativas para o ano anunciadas pelo Ministério do Planejamento e Orçamento na quarta-feira (22) tem chamado a atenção de economistas, uma vez que sinaliza uma aparente melhora que não vem de um esforço do governo para equilibrar as contas, nem representa uma medida estrutural.

Sede do Banco Central, em Brasília, onde ocorre a reunião do Comef (Comitê de Estabilidade Financeira) - Pedro Ladeira - 4.mai.22/Folhapress

A decisão, porém, está em sintonia com o objetivo da equipe econômica de indicar ao mercado financeiro que o déficit em 2023 não passará de 1% do PIB (Produto Interno Bruto), equivalente a cerca de R$ 100 bilhões, como prometido pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda).

O critério contábil usado pelo governo é considerado questionável por especialistas, embora ele tenha respaldo legal de uma emenda constitucional promulgada em 2022 que considera esses recursos fonte de receitas primárias. A avaliação é de que as manobras contribuem para mascarar uma fotografia muito pior em termos de déficit das contas públicas.

Na quarta-feira, o secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos, disse que o governo está "seguindo o mandamento constitucional" e não pode "de modo algum" interferir no entendimento do BC. "O critério oficial é o do BC. Se houver discrepância, nada impede que isso seja rediscutido", afirmou.

Pivô da controvérsia, o Fundo PIS/Pasep foi criado em 1975, a partir da unificação de programas que buscavam constituir uma espécie de poupança privada para o trabalhador a partir do recolhimento de contribuições dos empregadores. Em 1988, a finalidade desses recursos foi alterada, mas os saldos acumulados até então foram mantidos nas contas.

Com o passar dos anos, boa parte dos recursos continuava parada, apesar das tentativas de flexibilizar as possibilidades de saque. Hoje, há R$ 26 bilhões disponíveis sem perspectiva de resgate, dado que muitos beneficiários já faleceram sem deixar herdeiros ou sem que a família tenha conhecimento do dinheiro.

A emenda constitucional 126, que ampliou o limite de gastos do governo em 2023, autorizou a União a se apropriar desses recursos, dando um prazo adicional de cinco anos para eventuais beneficiários reclamarem os valores.

O mesmo dispositivo previu que os recursos sacados deveriam ser "apropriados pelo Tesouro Nacional como receita primária" para bancar investimentos. A interpretação do trecho é de que o valor resgatado deve entrar na conta de resultado —portanto, reduzindo o déficit.

A discrepância estatística vem do fato de que os órgãos têm metodologias diferentes de apuração do resultado primário. O Tesouro faz o cálculo a partir da diferença entre receitas e despesas, conforme normas de contabilidade previstas na legislação.

Já o BC analisa a variação de estoques de passivos e ativos, ou seja, a situação da dívida pública, obedecendo a padrões internacionais. Dessa forma, evita-se que cada país aprove metodologias diferentes de aferição dos números, comprometendo comparações e análises.

Uma ala do governo entende que o dispositivo da emenda também vincularia o BC, interpretação que o órgão parece rejeitar.

À Folha, o Banco Central informou que o resgate das contas PIS/Pasep, cujos depósitos estão parados há anos, representa uma "transferência de propriedade econômica de ativo financeiro do setor privado para o setor público em decorrência de legislação específica". Isso implica, segundo a instituição, uma reclassificação de ativos nas estatísticas fiscais.

"Dessa maneira, a operação não decorre de transação econômica ordinária entre o setor público e o setor privado, nem se relaciona ao resultado das operações públicas correntes", diz o BC em nota.

"De acordo com essas características econômicas, nos termos da metodologia das estatísticas fiscais, essa transação aumenta os ativos financeiros da União, mas não impacta o resultado primário, sendo considerada, do ponto de vista dos fluxos, como um ajuste patrimonial", afirma.

Assim, aos olhos do BC, o resgate dos valores no Fundo PIS/Pasep reduz apenas os indicadores da dívida pública, uma vez que há incorporação de um ativo ao patrimônio da União.

O Manual de Estatísticas Fiscais da instituição diz que "os ajustes [patrimoniais] são efetuados para retirar dos fluxos valores que não representam esforço fiscal despendido durante o período em análise".

Essa explicação tem relevância porque o governo está reduzindo o déficit com base no saque de valores acumulados ao longo de décadas.

Para efeito de comparação, quando diversos estados decidiram resgatar depósitos judiciais privados que estavam parados nos bancos, com o objetivo de melhorar seu caixa de forma temporária, isso não entrou na conta de resultado primário deles.

Numa situação contrária, quando a União é obrigada a reconhecer passivos acumulados no passado, esses valores entram na conta da dívida da União, mas não aprofundam o déficit. Daí a estranheza entre economistas e técnicos do próprio governo causada pelo dispositivo constitucional.

Esse grupo também critica o fato de a Constituição, norma fundamental do país, ser usada para dispor sobre questões tão particulares quanto a forma de contabilizar uma receita no Orçamento.

O economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e colunista da Folha, afirma que o relatório bimestral divulgado na quarta-feira parece ter sido escrito para apresentar uma previsão de déficit primário de 1% do PIB, cumprindo a promessa da Fazenda de melhora nas contas.

"Porém, para chegar a esse número, o documento desconsiderou despesas já contratadas, fez estimativa otimista de receitas, superestimou o PIB em relação à mediana apurada pelo Relatório Focus e lançou mão de critério contábil questionável, ainda que por determinação de emenda constitucional", critica.

Além de incluir os R$ 26 bilhões do Fundo PIS/Pasep como fonte de receitas, o governo não contabilizou a perda de arrecadação de R$ 3,2 bilhões com a correção da tabela do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física), nem o gasto adicional de R$ 4,5 bilhões para bancar o reajuste extra do salário mínimo, para R$ 1.320 a partir de 1º de maio.

Há ainda outras pressões por vir pelo lado do gasto, como os repasses a estados e municípios para financiar o novo piso da enfermagem (estimado em R$ 16 bilhões) e para ressarci-los pelas perdas com a redução do ICMS sobre combustíveis e energia (cerca de R$ 13 bilhões).

Feitos esses ajustes, Mendes calcula que o déficit do governo, na verdade, seria de R$ 170,3 bilhões —58,3% acima do projetado pelos órgãos oficiais.

O Ministério da Fazenda já disse que pretende buscar compensações para as medidas do salário mínimo e da tabela do IRPF, cortando outras despesas e elevando receitas, mas as eventuais medidas ainda são desconhecidas.

A pasta também calcula que o acordo com os estados envolvendo o ICMS terá um impacto menor em 2023, de R$ 4 bilhões, mas o valor ainda não foi incorporado às estimativas do Orçamento.

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