Começaram a fazer calcinhas; 50 anos depois, têm um império português de roupa íntima

Fábrica emprega mais de 900 pessoas divididas em cinco unidades, entre design, tinturaria, acabamentos e envio para os clientes

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Inês Duarte de Freitas
Lisboa | Público

São precisos mais de 3.000 fios para fazer um elástico de umas calcinhas. Na fábrica da Impetus, em Barqueiros, a máquina trabalha a uma velocidade estonteante para produzir os elásticos que servem para finalizar a roupa interior que segue para todo o mundo. Quem diria que peças tão pequenas seriam o segredo do negócio que Alberto e Emília Figueiredo criaram há 50 anos. É um verdadeiro império de roupa interior que, só em 2022, faturou 50 milhões de euros.

Chamar de império a marca e fábrica que se especializou em roupa íntima não é uma hipérbole. Eles empregam mais de 900 pessoas divididas em cinco unidades, entre tinturaria e unidade de acabamentos, sem esquecer as confecções –até têm uma em Cabo Verde. São uma verdadeira estrutura vertical, que pouco depende de terceiros. Ou seja, do design ao acabamento e envio para os clientes, tudo é feito dentro de portas.

Calcinha da marca portuguesa de roupa íntima Impetus - impetusunderwear no instagram

Ali, perto de Barcelos, a Impetus transforma o fio em malha, que depois é preparada para ser cortada. Hoje o processo é todo automatizado, mas nem sempre foi assim. Antigamente, os funcionários percorriam centenas de metros diariamente para esticar a malha a ser cortada. Agora, o sistema detecta quantas camadas de tecido estão na mesa e corta tudo de uma só vez.

Na sala ao lado é onde acontece um dos processos visualmente mais fascinantes da fábrica: a produção de elásticos. No computador, Ricardo Martins está a fiscalizar a operação, garantindo que não há erros. "Carregamos o desenho e cada um destes quadrados é um fio", explica, enquanto mostra um papel quadriculado com milhares de píxeis. Por dia, produzem 250 quilos de elásticos.

Quando saem das máquinas, as peças ainda não têm o elastano necessário para serem confortáveis. É o calor direto que torna as fibras elásticas. Depois, é preciso coser o elástico para criar a cintura de umas calcinhas ou de umas boxers masculinas –o que eles mais produzem.

Terminada a produção de um determinado elástico –quer seja para a marca Impetus ou para um dos clientes estrangeiros sob anonimato–, é necessário fazer a mudança dos fios. "Mudar o elástico numa máquina demora dois dias. Por isso é que nem todas as indústrias de roupa íntima fabricam elásticos e compram fora, mas ficam dependentes", explica o fundador Alberto Figueiredo, ao Público.

Percorrendo a fábrica, na sala seguinte, estão as máquinas que produzem as peças esportivas sem costura, uma nova especialidade para a Impetus. Aqui trabalha-se por pontos, desenhados pela equipe supervisionada por Matilde Faria. Criam vestuário desportivo para países de todo o mundo, com especial foco nos EUA, o principal mercado deste segmento.

Depois de produzidos os tubos de tecido pelas máquinas, as peças passam para a confecção, onde estão 120 pessoas sentadas nas máquinas de costura. Eurico Gonçalves está na Impetus há quase 40 anos e é o responsável por supervisionar os costureiros (sim, são mulheres na maioria, mas também há homens). Nas paredes, um monitor mostra o rendimento de cada profissional. Há prêmios para a produtividade.

Por fim, as peças passam pelo controle de qualidade e são medidas para verificar os tamanhos, antes de seguirem para os mais de 1.500 pontos de venda da Impetus em todo o mundo. É um cenário radicalmente diferente do que Alberto e Emília Figueiredo criaram há precisamente 50 anos na casa de um tio com seis máquinas de costura.

Crescimento e criação de marca

No início dos anos 1970, Alberto estava no serviço militar e, no tempo livre, tratava da contabilidade de uma confecção têxtil, que era gerida pela mulher, Emília. A empresa estava prestes a fechar após um "desentendimento dos sócios", e o casal decidiu empreender numa "pequena indústria". E assim foi: "O embalamento era feito na cozinha, porque era uma das divisões maiores. Na sala era a confecção, e o corte fazíamos num dos quartos."

Começaram de imediato a produzir calcinhas destinadas à exportação, feita através de uma empresa intermediária. "Fazíamos calcinhas e singlets [camisolas de alças] em poliamida, em cores que hoje seriam impensáveis, como amarelo ou vermelho", recorda o empresário. Pouco depois, a revolução de 25 de Abril de 1974 quase deitaria por terra o negócio recém-criado, pelas dificuldades que se impuseram à exportação durante algum tempo.

Valeu-lhes o mercado nacional até voltarem ao estrangeiro e à crescente ascensão. Em 1983 decidem criar a marca Impetus. Foi criada com o propósito de firmar a internacionalização como missão do projecto. "Se criarmos uma marca também podemos caminhar em nome próprio. Sem isso, estava sempre sujeito a virem cá e pagaram-me aquilo que queriam pagar para produzir", defende.

Cimentar a marca é um processo que tem sido feito há 40 anos, mas que se veio a revelar uma verdadeira luta, confessa. "É um investimento muito grande e não é fácil porque os apoios não são muitos", lamenta. A falta de apoios é um dos motivos por que acredita Portugal continuar a ser um país conhecido pela sua indústria, em vez de o ser pelas marcas. "Temos o conhecimento técnico, mas falta-nos a outra parte que é importante na criação de marca: o marketing que faz acrescentar valor", aponta.

Além disso, Alberto Figueiredo critica a falta de união do têxtil português, que, defende, devia assumir uma posição mais à imagem do sector do calçado, que apoia a promoção estrangeira de forma individual. Ou seja, cada marca pode pedir apoio para participar em eventos além-fronteiras, sem precisar de ir numa comitiva.

Lá fora, diz que é também preciso quebrar barreiras. "Antigamente vinha-se a Portugal porque era barato. Agora, os portugueses quando querem vender não têm preço para competir, porque o custo é caro quando comparado com aquilo que custa, por exemplo, no Vietname", conta.

É esse um dos motivos por que continuam a produzir para marcas privadas, como forma de possibilitar uma maior liberdade financeira à empresa. Simultaneamente, Alberto Figueiredo lembra que ter só uma marca numa fábrica não potencia a rentabilização da indústria, porque ficam limitados aos calendários de encomenda e entrega de colecções. "Ter etiquetas privadas dá-nos jeito para ter uma produção uniforme", explica.

Em virtude de acordos de confidencialidade não é possível conhecer quem são os clientes da fábrica, mas incluem grandes nomes internacionais, de países como EUA, Espanha, França, Suíça, Alemanha ou Suécia. A fábrica do grupo em Cabo Verde produz quase em exclusivo para o mercado norte-americano, por ter algumas vantagens fiscais, adianta. Lá, o negócio é também uma forma de apoiar a economia local, empregando cerca de 120 pessoas.

Sustentabilidade e inovação

Por cá, além de duas unidades de confecção e da gigante fábrica de Barqueiros, parte dos esforços está concentrada na tinturaria, à responsabilidade do filho, Ricardo Figueiredo. Consciente de que grande parte do impacte ambiental da indústria têxtil vem desta fase do processo, é lá que têm implementado a "revolução" da sustentabilidade, embora as iniciativas não se esgotem aí.

"Além de utilizarmos matérias-primas mais sustentáveis, como o algodão de carbono negativo, um dos pontos importantes em que estamos a apostar é a transparência da cadeia de valor", começa por explicar o vice-presidente da Impetus. Alguns dos produtos já trazem um código QR, que permite acompanhar a cadeia de valor daquela peça e estimar o ciclo de vida.

Contudo, o trabalho de fazer uma transição sustentável tem de começar no início da cadeia de produção, acredita Ricardo Figueiredo. Além de já terem instalado na tinturaria medidores para estimar os consumos de energia da maquinaria, ajudando a uma análise do ciclo de vida mais clara, estão a implementar mudanças na produção. "Através dessa análise do ciclo de vida percebemos que 46% do nosso impacte ambiental vinha da tinturaria", revela.

Para reduzir a quantidade de água utilizada e os químicos libertados para os ecossistemas, são pioneiros na utilização da tecnologia colorifix, que tinge os têxteis com recurso a bactérias provenientes da natureza. Por exemplo, o pigmento verde vem de uma folha ou da pena de um animal, salvaguardando o seu bem-estar.

A solução ainda não está a ser implementada, mas, quando for garantida a sua viabilidade, vai permitir reduzir não só a quantidade de água, mas também a energia. "Por exemplo, para tingirmos poliéster tinha de ir a 130º durante oito horas. Com esta tecnologia, conseguimos tingir qualquer fibra a 30º ou 40º em quatro horas", avança. Além disso, por não ter químicos, toda a água pode ser reutilizada.

Esta procura por soluções inovadoras não é novidade no grupo, que faz sucessivamente parcerias com universidades para o desenvolvimento tecnológico. Resultado dessa ligação é, entre outras, a linha Protechdry que, à primeira vista, se assemelha a roupa interior tradicional, mas é, afinal, uma tecnologia patenteada que permite absorver e neutralizar o odor da incontinência urinária.

É esse caminho de inovação que os empresários querem continuar a trilhar. Para já, vão apostar numa expansão para o mercado da Escandinávia, afirmando o nome da Impetus enquanto marca própria. Em média, 95% da facturação vem do estrangeiro. Mas os 5% que correspondem a Portugal são de elevada importância para a família Figueiredo, que quer manter-se sediada por cá.

Não têm lojas próprias, mas vendem por todo o país, com destaque para o El Corte Inglès. Só no centro de Lisboa, facturam mais de 30 mil euros mensais com a marca Impetus. O objectivo é que os portugueses os conheçam, se não pelo nome, pela qualidade. "Todos conhecemos o exemplo da Nokia, que não conseguiu acompanhar a evolução dos tempos", lembra Ricardo Figueiredo.

E o pai concorda: "Nós, humanos, nascemos, crescemos, vivemos, envelhecemos e morremos. Com as empresas pode acontecer o mesmo, podem morrer, se quem lá está não estiver sempre a apostar na renovação." Alberto e Emília Figueiredo poderão não ter oportunidade de acompanhar os próximos 50 anos, mas assistem "ao melhor período da empresa de sempre" e deixam um legado para as gerações vindouras.

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