Em primeiro teste do arcabouço, Câmara aprova com folga regime de urgência

Conteúdo da proposta deve ser apreciado na próxima semana

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Brasília

Em um primeiro teste de apoio dos parlamentares ao novo arcabouço fiscal apresentado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Câmara dos Deputados aprovou por 367 votos a 102 a urgência do projeto de lei complementar que cria novas regras para a gestão das contas públicas.

O placar expressivo da aprovação vai na direção do desejo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de reunir um quórum de PEC (proposta de emenda à Constituição) para a aprovação do novo arcabouço. Uma mudança constitucional precisa do apoio de 308 deputados —número superado com folga na votação desta quarta.

O governo teve o respaldo do PT e de siglas como PC do B, PSD, MDB, União Brasil, PSDB e Cidadania. Apesar do apoio expressivo, dois partidos da base aliada de Lula orientaram contra a urgência: PSOL e Rede.

Presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ministro Fernando Haddad (Fazenda) durante entrega do arcabouço fiscal ao Congresso
Presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ministro Fernando Haddad (Fazenda) durante entrega do arcabouço fiscal ao Congresso - Ueslei Marcelino/Reuters

Já o PL do ex-presidente Jair Bolsonaro deu 29 votos favoráveis, apesar da orientação contrária do partido.

O regime de urgência ainda não é a votação do mérito e significa, na prática, que o texto ganha precedência na tramitação em relação a outros projetos em andamento na Casa. A proposta é uma das prioridades da equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Na última segunda-feira (15), representantes do governo e lideranças partidárias acertaram que a apreciação do conteúdo do novo arcabouço ocorrerá na semana que vem. Se aprovado, o texto ainda precisa passar pelo Senado.

O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), afirmou nesta quarta que o PSD deve ficar com a relatoria do texto no Senado. A sigla é a maior da Casa, com 16 membros. Ele citou os nomes do líder, Otto Alencar (PSD-BA), e do senador Omar Aziz (PSD-AM), que presidiu a CPI da Covid.

O relator da proposta, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), apresentou seu parecer com mudanças que buscam endurecer a regra, como a inclusão de gatilhos de ajuste das contas em caso de descumprimento das metas e o enxugamento da lista de despesas que ficarão fora do novo limite de gastos.

Entre os gatilhos está a proibição à concessão de novas renúncias fiscais e à adoção de medidas que impliquem reajuste de despesa obrigatória acima da inflação.

Por outro lado, Cajado blindou algumas despesas obrigatórias do alcance desses gatilhos, como aquelas atreladas ao salário mínimo.

Havia o risco de o descumprimento da meta travar a política de valorização do salário mínimo, que assegura correção do piso nacional pela inflação mais a variação do PIB (Produto Interno Bruto) de dois anos antes. A pedido de Lula, porém, o relatório diz expressamente que a política não será impactada pelos gatilhos.

Lula também pediu proteção às despesas com o programa Bolsa Família, e Cajado chegou a dizer que elas ficariam blindadas. Hoje, no entanto, não há uma política de reajuste para os benefícios do programa social. Com isso, em caso de descumprimento da meta fiscal, no ano seguinte o Bolsa só poderá ser corrigido pela inflação.

O relator também decidiu conceder na largada uma expansão maior dos gastos em 2024, primeiro ano de vigência da nova regra. O limite vai crescer 2,5% acima da inflação, teto da margem estabelecida no marco fiscal (que é de 0,6% a 2,5% ao ano).

Líder do governo na Câmara, o deputado José Guimarães (PT-CE) elogiou o relator do texto e disse que ele "teve uma paciência do tamanho da paciência do ministro Haddad" para dialogar com todos os partidos.

"Frente ao fim do teto de gastos, nós precisamos de um novo regime fiscal para garantir estabilidade, previsibilidade e readquirir a confiança no Brasil perante o mundo e os agentes econômicos", afirmou.

Após a aprovação da urgência, Cajado disse que os parlamentares que votaram a favor nessa etapa podem não estar totalmente satisfeitos com o conteúdo do texto, mas avaliou que o resultado demonstrou consciência sobre a necessidade de aprovar o arcabouço.

"Obviamente que ninguém aqui vai dizer: 'eu saio super satisfeito'. Mas minimamente satisfeito me parece que todos pensam dessa forma, porque a demonstração no painel fala por si própria", disse.

Segundo ele, os próximos dias até a votação permitirão maior "amadurecimento do texto", embora ressalte que isso não significa certeza de novas mudanças. "Minha opção é manter o texto como está", disse.

Cajado alertou ainda que o desafio do novo governo é buscar as receitas necessárias para conciliar o novo patamar de despesas e a meta de zerar o déficit já em 2024, pois isso significa ter uma arrecadação no mesmo valor dos gastos.

"Nós temos aqui a convicção de que existe um consenso na Casa de que votação de matéria que eleve a atual carga tributária é difícil de ser aprovada", afirmou.

Ainda assim, ele considera a regra factível. "As conversas e tratativas que eu pessoalmente tive, vários líderes tiveram com os representantes do governo, nós deixamos claro o que terá que ser feito, e esse é o desafio do governo, um esforço enorme para fazer um aumento de arrecadação. É possível que isso aconteça", disse o relator.

O parecer teve uma boa receptividade até mesmo entre membros da oposição. Segundo integrantes do PL, o apoio de 29 parlamentares da sigla à urgência do arcabouço pode ser igual ou até maior na votação da próxima semana. A avaliação é que Cajado conseguiu "melhorar" o que foi apresentado pelo governo.


Tramitação

O que acontece agora, com a aprovação da urgência?

O projeto em regime de urgência pode ser votado rapidamente no plenário, sem necessidade de passar pelas comissões. O relator dá seu parecer durante a sessão no plenário. O texto é lido na tribuna, e há possibilidade de votação imediata. A votação do mérito está prevista para a próxima quarta-feira (24).

O que é preciso para a proposta ser aprovada no Congresso?

Projetos de lei complementar exigem maioria absoluta de votos favoráveis, isto é, mais da metade dos integrantes de cada Casa. Isso significa ao menos 257 votos na Câmara e 41 votos no Senado.

Qual é o percurso final da tramitação?

Após passar pela Câmara dos Deputados, o texto segue para o Senado. Caso não haja mudanças, o texto vai à sanção presidencial.

No entanto, se os senadores fizerem modificações no texto, o projeto retorna para a Câmara, que terá palavra final —os deputados podem acatar as mudanças dos senadores ou restituir o texto originalmente aprovado na Câmara. Nesse caso, após a nova votação o texto é remetido à sanção do presidente da República.

O chefe do Executivo tem 15 dias úteis para sancionar o projeto integral ou com vetos parciais em alguns dispositivos, ou ainda vetá-lo totalmente. Todos os vetos passam por posterior validação do Congresso, que pode derrubá-los mediante maioria absoluta de deputados (257) e senadores (41).


Veja ponto a ponto as principais mudanças feitas pelo relator:

OBRIGAÇÃO DE CONTINGENCIAR

  • Relator inseriu no texto a obrigação de o governo contingenciar despesas durante o ano, caso haja perspectiva de frustração de receitas ou aumento de outros gastos que ameace o cumprimento da meta fiscal no exercício. A tarefa é exigida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, mas o governo pretendia flexibilizar a norma por meio do novo arcabouço.

  • Relator inova ao propor que o contingenciamento das discricionárias deve ficar limitado a 25% de seu total.

INCLUSÃO DE GATILHOS DE AJUSTE

Caso as contas do governo apresentem resultado abaixo do limite inferior da meta, fica vedado:

  • Alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa

  • Criação ou majoração de auxílios, vantagens e benefícios de qualquer natureza

  • Criação de despesa obrigatória

  • Medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação, observada a manutenção do poder de compra

  • Criação ou expansão de programas e linhas de financiamento de dívidas que ampliem subsídios e subvenções

  • Concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária

As medidas valem por um ano. Se no ano seguinte a meta for atingida, as sanções caem automaticamente.

O presidente da República pode propor ao Congresso a suspensão parcial ou maior gradação das vedações listadas acima, desde que demonstre que o impacto e a duração das medidas adotadas serão suficientes para a correção do desvio.

Medidas de ajuste não se aplicam aos reajustes do salário mínimo definidas em lei de valorização do piso.

No segundo ano seguido de descumprimento, passa a ficar vedado também:

  • Aumentos e reajustes em geral na despesa com pessoal

  • Admissão ou contratação de pessoal, a não ser para repor vacâncias

  • Realização de concurso público, exceto para repor vacâncias

DIMINUIÇÃO DA LISTA DE EXCEÇÕES AO LIMITE DE DESPESAS

O que o relator tirou da lista de exceções proposta pelo governo (ou seja, itens passam a consumir espaço no limite de gastos):

  • Despesas com investimentos do Tesouro em empresas estatais não-financeiras

  • Repasses a estados e municípios para bancar o piso da enfermagem

  • Fundeb (fundo da educação básica)

  • Ajuda federal às forças de segurança do Distrito Federal por meio do FCDF (Fundo Constitucional do Distrito Federal)

Como ficou a lista de exceções ao limite de gastos:

  1. Transferências constitucionais a estados e municípios a título de repartição tributária

  2. Créditos extraordinários, liberados em casos imprevisíveis e urgentes (como os decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública)

  3. Despesas custeadas com recursos de doações ou de acordos judiciais ou extrajudiciais firmados em função de desastres

  4. Despesas das universidades e instituições federais, e das empresas públicas da União prestadoras de serviços para hospitais universitários federais, quando custeadas com receitas próprias, de doações ou de convênios

  5. Despesas custeadas com recursos oriundos de transferências dos demais entes da Federação para a União destinados à execução direta de obras e serviços de engenharia

  6. Despesas com acordos de precatórios a serem pagos com desconto

  7. Operações de encontros de contas com precatórios

  8. Despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições

  9. Transferências legais a estados e municípios de recursos obtidos com concessão florestal

CÁLCULO DE RECEITAS

  • Adiciona à lista de exceções do cálculo das receitas os programas especiais de recuperação fiscal que sejam destinados a regularizar a situação de devedores e gerar recursos à União. Com isso, o governo não poderá usar esse tipo de recurso para expandir a receita e, em consequência, a despesa do ano seguinte.

  • Relator manteve de fora do cálculo das receitas os demais itens propostos pelo governo. São eles toda a arrecadação com concessões e permissões, dividendos e participações pagos por estatais, e ganhos com a exploração de recursos naturais (o que compreende principalmente royalties com petróleo) –além da conta com transferências constitucionais feitas a estados e municípios.

BÔNUS PARA INVESTIMENTOS

  • Passa a prever que apenas 70% do excesso de superávit poderá ser direcionado a investimentos. No projeto original, o excesso de arrecadação em relação à meta de primário poderia ser usado, de forma única, para bancar obras e outros investimentos sem afetar o limite de despesas. Haveria apenas um limite temporário, equivalente a R$ 25 bilhões (corrigido anualmente pela inflação), válido até 2028.

Colaborou Thaísa Oliveira, de Brasília

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