Arcabouço pode travar alta real do mínimo se governo estourar meta por 2 anos

Regra em discussão afetaria política de valorização salarial proposta por Lula

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Brasília

O Congresso Nacional e o governo Lula (PT) discutem incluir no arcabouço fiscal um trecho que suspende a alta real do salário mínimo caso a meta de resultado primário seja descumprida por dois anos seguidos, segundo quatro pessoas envolvidas na negociação ouvidas pela Folha.

Nesta situação, o salário mínimo ainda seria corrigido pelo índice oficial da inflação, para preservar seu poder de compra, mas sem o aumento adicional previsto na política de valorização apresentada pelo governo petista.

A proposta foi colocada na mesa como forma de prever reequilíbrio das contas, caso haja frustração da meta fiscal. Ainda não há uma decisão final sobre esse ponto, discutido em meio às negociações do relator, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), para fortalecer a regra.

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O plenário da Câmara dos Deputados em dia de posse dos parlamentares na nova Legislatura - Pedro Ladeira - 01.fev.2023/Folhapress

O governo participa dessas discussões, mas tem tido o desafio de se equilibrar entre as cobranças do mercado e de parlamentares de centro e direita por uma norma mais rígida e as pressões vindas do próprio PT, que almeja um afrouxamento das diretrizes.

O tema é considerado delicado por interferir em uma das plataformas de campanha de Lula —a política de valorização do salário mínimo. No início de maio, o presidente encaminhou projeto de lei que retoma a regra que já havia vigorado em gestões petistas: a concessão de um reajuste pela inflação mais a variação do PIB (Produto Interno Bruto) de dois anos antes.

A discussão sobre os gatilhos, a serem acionados em caso de contas piores que o esperado, envolve não só a cobrança do mercado e do Legislativo, mas também uma questão legal.

A PEC (proposta de emenda à Constituição) Emergencial, aprovada em 2020, durante a gestão Bolsonaro, prevê que o Executivo deve dispor sobre regras voltadas à sustentabilidade da dívida pública em lei complementar, e essa norma pode autorizar a aplicação de gatilhos previstos em outro artigo, o 167-A.

Esse dispositivo proíbe, entre outras coisas, a "adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação, observada a preservação do poder aquisitivo referida no inciso IV do caput do art. 7º desta Constituição".

A correção do salário mínimo tem impacto direto em uma série de despesas obrigatórias, como benefícios previdenciários e assistenciais, além do seguro-desemprego e do abono salarial —espécie de 14º salário pago a trabalhadores com carteira que ganham até dois pisos.

Há um entendimento no próprio governo de que a proposta de arcabouço fiscal —que é um projeto de lei complementar— é a norma que atende ao comando constitucional sobre a sustentabilidade da dívida, invocando, assim, a aplicação dos gatilhos do artigo 167-A. Por isso, um reajuste do salário mínimo acima da inflação poderia ser travado.

É por isso também que outras vedações previstas nesse dispositivo, como conceder novas renúncias, reajustar salários de servidores e realizar novos concursos públicos também estão no radar do relator e do Congresso.

Além disso, há uma observação de que a lei complementar do novo arcabouço fiscal estará, quando aprovada e sancionada, em um nível acima da política de valorização do salário mínimo (que seria uma lei ordinária) na hierarquia da legislação brasileira. Em outras palavras, a lei que trata do piso teria que se subordinar às novas regras fiscais.

Para evitar que o tema se torne um problema político para o governo Lula, em um ambiente já de críticas ao arcabouço fiscal, governo e Congresso têm discutido como os gatilhos do 167-A devem ser aplicados e com que gradualismo.

Uma das maneiras estudadas é sugerir que a suspensão do aumento do piso acima da inflação só entre em cena num caso extremo, em que a meta de resultado primário é descumprida por dois anos seguidos.

A violação da meta por um único ano deflagraria o acionamento dos outros mecanismos tidos como menos delicados.

Na avaliação de técnicos experientes, é possível que o gatilho do salário mínimo nem sequer seja acionado, pois, além da margem de tolerância para o cumprimento da meta fiscal, o governo poderia recorrer ao Congresso para flexibilizar o alvo perseguido em caso de ameaça ao resultado pelo segundo ano seguido. Isso evitaria a aplicação da sanção sobre o reajuste do piso nacional.

Ainda assim, a aposta nos bastidores do governo é que o tema gere desconforto na bancada do PT e no entorno do presidente Lula, dada a sensibilidade do assunto.

A apresentação do parecer do novo arcabouço fiscal foi adiada para segunda-feira (15), quando Cajado deve discutir o texto com lideranças da Câmara. Por isso, é possível que o relatório ainda sofra novas mudanças.


Entenda o debate sobre o arcabouço e o salário mínimo

O que está em discussão?

O governo propôs um arcabouço fiscal que limita o crescimento dos gastos e prevê margem de tolerância para cumprir as metas de resultado primário (obtido pela diferença entre receitas e despesas). Em caso de descumprimento da meta, há como sanção um avanço menor do limite de despesas no ano seguinte.

O Congresso quer fortalecer a regra e prever gatilhos de ajuste específicos, que precisariam ser seguidos pelo governo em caso de estouro da meta.

O que diz a Constituição?

A PEC Emergencial, aprovada em 2020 e convertida na emenda constitucional 109, prevê que o governo pode dispor sobre regras voltadas à sustentabilidade da dívida pública em lei complementar. Há o entendimento de que essa lei é o novo arcabouço fiscal.

Na mesma emenda constitucional, o artigo 163 diz que a lei voltada à sustentabilidade da dívida pública pode autorizar o acionamento de gatilhos listados em outro dispositivo, o 167-A.

Quais são esses gatilhos?

O artigo 167-A prevê uma série de vedações, como concessão de novas renúncias e ampliação de gastos com pessoal. Um dos itens proíbe a adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da inflação.

O salário mínimo é referência para dois terços das aposentadorias e pensões pagas pelo INSS, além de guiar uma série de outras despesas obrigatórias, como benefícios assistenciais, seguro-desemprego e abono salarial. Por isso, sua correção é alcançada pela trava do gatilho constitucional.

Como isso afeta os planos de Lula?

O governo Lula apresentou um projeto de lei que institui uma política de valorização do salário mínimo, com correção pela inflação mais a variação do PIB (Produto Interno Bruto) de dois anos antes.

Se o gatilho for de fato incluído na proposta, o Executivo poderia ficar proibido de conceder reajuste acima da inflação em caso de descumprimento da meta fiscal.

Qual a solução em discussão?

Para evitar um problema político ainda maior, governo e Congresso discutem uma aplicação gradual dos gatilhos de ajuste. Dessa forma, a vedação à alta real do salário mínimo seria acionada apenas no caso de descumprimento da meta fiscal por dois anos seguidos. Outros mecanismos menos delicados seriam implementados antes.

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