Descrição de chapéu O que foi a Ditadura

Montadoras criaram 'lista suja' de funcionários na ditadura, mostram documentos

Ford e Scania não responderam, Mercedes diz não ter comentários; Volkswagen fez acordo em 2020 e pagou indenização por atos no regime militar

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São Paulo

Em meio as greves metalúrgicas na região do ABC paulista, no fim da década de 1970 e início dos anos 1980, as direções de fábricas passaram a agir em parceria com o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a polícia política da ditadura militar, para reprimir e espionar trabalhadores.

As empresas repassavam aos órgãos de repressão nomes e informações de ativistas sindicais e lideranças dos trabalhadores. Havia perseguição, espionagem e demissão por justa causa de operários.

Afastados por causa de suas atividades sindicais ou por simpatizarem com o movimento, os trabalhadores entravam na chamada "lista suja" do ABC, relação usada para bloquear a futura recolocação profissional de seus integrantes.

Caminhão com preças de veículos parado em pátio da Ford durante greve nos anos 1980, em frente a grande logotipo com o nome Ford escrito dentro de uma elipse escura
Caminhão com preças de veículos parado em pátio da Ford durante greve nos anos 1980 - Acervo Folhapress

"Após a realização de greves em diferentes indústrias são relacionados, pelas firmas, os ativistas que se destacaram durante as greves. As relações são passadas de uma para outra indústria e cabe a decisão à empresa que recebeu, admitir ou não o ativista relacionado", sugere o texto de um desses documentos confidenciais da ditadura militar guardados no Dops.

A "lista suja" das fábricas do ABC foi cadastrada no Dops em 21 de janeiro de 1981. Produzida pelo Setor de Análise, Operações e Informações (SOI) do Dops, cujo logotipo era um cavalo marinho, era mantida sob sigilo e enumera pelo menos 73 empresas em operação na região, com mais de 400 nomes de trabalhadores.

Contatadas, a Ford e a Scania não responderam aos questionamentos da reportagem. A Mercedes-Benz não comentou. Em 2020, a Volkswagen reconheceu que houve perseguição, prisão, tortura e espionagem de trabalhadores dentro de sua unidade em São Bernardo do Campo, o que gerou pagamento de indenização de R$ 36,3 milhões.

Na lista suja das montadoras, ao lado dos nomes do trabalhador e da empresa, constava o endereço residencial e o setor de trabalho de cada um. Todos os envolvidos eram fotografados e fichados.

A iniciativa das indústrias coincidiu com um período de frequentes greves de trabalhadores, entre 1978 e 1983, principalmente na região do ABC. Os movimentos reivindicavam melhorias salariais e de condições de trabalho, mas também pediam eleições diretas e democracia.

Os relacionados eram espionados dentro das unidades fabris e reuniões dentro do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, atual Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. O controle era realizado também em igrejas, bares e assembleias na porta das empresas.

Somente da Mercedes-Benz constam 52 trabalhadores da linha de produção e do setor administrativo. Na sequência estão 47 funcionários da Volkswagen, 31 da Ford e 13 da Scania.

"Fui obrigado a mudar de atividade, fui trabalhar em um restaurante que comprei em sociedade, pois não arrumava emprego na região [do ABC]. Depois que vendi o restaurante, fui trabalhar em Santos em uma ferramentaria pequena. Ganhava menos da metade do salário que recebia na Mercedes", diz Cláudio Rosa, sindicalista que trabalhou na Mercedes-Benz de 1975 a 1980.

Demitido após a greve de 1980, o atual secretário-geral da Associação dos Metalúrgicos Aposentados do ABC, Luiz Soares da Cruz, é outro nome da Mercedes-Benz que integra a lista: "Sofri muito com e demissão e depois não conseguia mais emprego".

"Havia um controle muito grande das atividades dos trabalhadores dentro da Mercedes. A gente tinha essa preocupação, os seguranças observavam nossas conversas em todos os locais. Tinha essa lista suja com diversos nomes, seção e endereço da casa das pessoas", afirma Cruz.

"A repressão era forte em todos os setores e com os dirigentes do sindicato. Sempre tinha o pessoal da segurança nos seguindo a uma certa distância em qualquer atividade nossa lá dentro", rememora hoje Cláudio Rosa.

Outro relatório, assinado pela equipe Fox 9, da Divisão de Ordem Social da Delegacia de Sindicatos e Associações de Classes do Dops, revela que na manhã do dia 27 de março de 1980 foi realizada uma reunião "entre encarregados de segurança industrial de diversas firmas; entre elas Mercedes-Benz, Ford do Brasil, Scania Vabis do Brasil", na qual foram abordadas estratégias do então líder sindicalista e atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

De janelas abertas, grevistas acenam com cartazes que dizem 'tudo parado na Scania', em greve dos anos 1980
Grevistas acenam com cartazes que dizem 'tudo parado na Scania', em greve dos anos 1980 - Acervo Folhapress

Integrantes da Fox 9 contam que, para evitar que operários furassem greves, a estratégia de Lula era usar trabalhadores de uma empresa para barrar a entrada de operários em outra, nos piquetes montados nas portas das fábricas da região do ABC. "Turma da Volkswagen, aproximadamente 450 operários param a Mercedes-Benz enquanto os operários desta param a Volkswagen", revela o papel confidencial.

A ação conjunta entre os chefes de segurança das empresas na região junto aos militares também está descrita no relatório 035/80 da Delegacia de Sindicatos e Associações de Classe do Dops, assinado pela equipe Fox 9.

O documento mostra que numa "reunião entre encarregados de segurança das indústrias foi comentado que ‘Lula’ estaria jogando uma cartada decisiva na fase que atravessa o sindicalismo brasileiro, ou cresce mais ou abandona tudo: é o consenso geral dos encarregados de segurança".

O presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Adriano Diogo, disse que a região do ABC era considerada uma zona de segurança nacional no período da repressão, cujo controle de segurança nas empresas fora exercido por militares.

"Nas fábricas, na ditadura, o controle de segurança era de um pool de empresas. Esses setores empresariais tinham um fantástico esquema com os agentes da repressão", diz Diogo.

A Mercedes-Benz do Brasil informou desconhecer, até agora, "qualquer evidência de suporte da empresa para o regime militar" no país. "Diante disso, não temos nada a comentar", diz a nota da assessoria de imprensa da montadora alemã, que destaca ainda que "o respeito e a preservação dos direitos humanos é ponto central para nossa Companhia".

Contatadas, a Ford e a Scania não responderam aos questionamentos da reportagem.

Em 2020, a Volkswagen reconheceu que houve perseguição, prisão, tortura e espionagem de trabalhadores dentro de sua unidade em São Bernardo do Campo. O que gerou pagamento de indenização de R$ 36,3 milhões.

As investigações desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluídas em 2014 também comprovaram a existência desse monitoramento por parte das empresas em todo o Brasil, em consórcio com os órgãos de repressão.

Mas não houve recomendações para investigar responsabilidades e aplicar sanções a empresários, diretores de companhias, militares e outros agentes da repressão.

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