Descrição de chapéu Saneamento no Brasil

Planos sanitários da ditadura se esfarelaram no seu declínio

Folha ouve oito especialistas para recontar a história desse serviço no Brasil desde o século 18

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São Paulo

A aprovação do marco legal do saneamento básico, em 2020, e os debates sobre o tema que devem ocorrer nos próximos meses, sob o governo Lula, colocam em evidência as iniciativas neste campo ao longo da história do país.

Com base nas informações e análises de oito especialistas —alguns da academia, outros da iniciativa privada—, a Folha reconta a história de um serviço que ainda não consegue levar água potável a 14% da população —o que deixa o Brasil na 85ª posição em um ranking de 137 países— e deixa ainda sem esgoto 51% dos brasileiros —o que nos leva ao 76º lugar entre 129 países.

Nos três primeiros capítulos dessa trajetória, saiba quem eram os tigres das águas servidas, pioneiros do saneamento no Brasil, no século 18, conheça as inovações trazidas pelo imperador dom Pedro 2º. e entenda por que Belo Horizonte, apesar de ser uma cidade planejada, deixou passar o trem do saneamento.

Grandes tubos de concreto enfileirados ao lado de um buraco e cercados com uma rede cor de laranja
Obras de saneamento da Sabesp na avenida Iperoig, na orla do Itaguá, próximo ao centro de Ubatuba - Wendell Marques - 13.jan;2023/Folhapress

4 - O plano dos militares

A era Getúlio Vargas representou um retrocesso para o saneamento básico no país, segundo Aspásia Camargo.

Nas décadas anteriores, a chamada República Velha, predominavam nesse setor as companhias ligadas aos municípios e as empresas privadas. "Quando chegou ao poder em 1930, Getúlio deixou claro que não queria conviver com o privatismo da época. Essa visão foi desastrosa porque atrapalhou a expansão do saneamento. Ele parou o setor privado, e o setor público não disse a que veio", afirma a socióloga.

A partir de 1956, Juscelino Kubitschek trilhou caminho semelhante ao do líder gaúcho, destinando papel coadjuvante ao setor, observa Aspásia. "O desenvolvimentismo estava muito mais associado às iniciativas ligadas ao transporte e à energia", diz ela.

A década de 1960 se aproximava do fim quando a ditadura militar baixou um decreto criando o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). Temas como abastecimento de água e coleta de esgoto ganhavam uma atenção do Executivo federal como jamais havia acontecido no período republicano.

"O Planasa foi a primeira grande política voltada ao saneamento no Brasil. Existiam, até então, principalmente companhias municipais, que foram se especializando na distribuição da água, nos sistemas de esgoto, mas ainda em volumes pequenos", diz Edison Carlos, do Instituto Aegea.

Coordenado pelo BNH (Banco Nacional da Habitação), o Planasa estimulou fortemente a criação das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs), para as quais destinava recursos para implantação ou melhoria de sistemas de água e esgoto. Assim, surgiram empresas como a paulista Sabesp, a mineira Copasa e a catarinense Casan.

De acordo com Kelman, presidente da Sabesp de 2015 a 2018, o governo federal acertou "ao definir que o serviço de saneamento precisaria ter escala". O Planasa incentivava a regionalização da prestação de serviços, deixando de lado a ideia do município como unidade de concessão. "A partir daí, houve grande melhora na cobertura de água potável, mas nem tanto no tratamento de esgoto", diz o engenheiro.

O programa funcionou bem enquanto a ditadura militar teve capacidade de investimento, financiando as empresas estaduais. "O modelo se esfarelou a partir da década de 1980", recorda-se Rogério Tavares, vice-presidente de relações institucionais da Aegea.

Um dos objetivos do Planasa era atender 50% da população urbana do país com esgoto até 1980, como lembra Luana Pretto, presidente do Instituto Trata Brasil. Dados de 11 anos depois indicavam o país ainda longe dessa meta, com apenas 35%.

Ao ser extinto nos anos 1990, o plano deixou legados bem-sucedidos, como a companhia paranaense Sanepar, e outros longe da excelência, como a fluminense Cedae. "Além da falta de investimentos, a Cedae sofreu com a ingerência política", diz o engenheiro civil Márcio Santa Rosa sobre a empresa que foi concedida, em grande parte, à iniciativa privada no ano retrasado.

Temos no Brasil muito conhecimento científico para avançar com o saneamento, isso nunca faltou. O que falta é vontade política

Márcio Santa Rosa

coautor de "A Epopeia do Saneamento"

5 - E agora?

O país deu um passo relevante em 2007, no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com a lei que ampliou o rol de serviços dentro do que se entende como saneamento básico. Até então, falava-se em coleta e tratamento de esgoto, além de abastecimento de água. Desde então, drenagem, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos foram incorporados ao pacote.

Essa lei também contribuiu para aprimorar a regulação do setor. Não houve, contudo, um crescimento expressivo no atendimento à população desde então.

O mais recente episódio dessa história de séculos é o marco regulatório de 2020, que começou a ser gestado sob a administração de Michel Temer (MDB) e foi aprovado no governo de Jair Bolsonaro (PL).

A medida abriu caminho para uma participação maior de empresas privadas. Um aspecto essencial nesse sentido foi o rompimento dos chamados "contratos de programa", que permitiam que empresas estaduais de saneamento fossem contratadas por prefeituras sem licitação.

Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro, participa do leilão da segunda fase da concessão da Cedae, em dezembro de 2021 - Rogerio Santana/Divulgação

Luana Pretto avalia de modo positivo o novo marco. "São medidas que abrem a possibilidade para mais alternativas de investimento. Se o trabalho da companhia estadual está dando certo, excelente! Deve ser mantida [pela prefeitura responsável pela contratação]. Mas e os casos em que a empresa não consegue avançar rumo à universalização dos serviços? É preciso ter um plano B", afirma a presidente do Instituto Trata Brasil.

Ela recorre a dados de 2021 para estender sua argumentação. "Naquele ano, a Sabesp investiu R$ 126 por habitante enquanto a média do Brasil foi R$ 82. No Acre, por exemplo, foram R$ 5. Em algumas regiões, há empresas sem dinheiro para promover essa universalização."

Jerson Kelman pensa de modo semelhante. Segundo ele, o novo marco "não obriga que a empresa de saneamento seja privada, mas permite que ela seja privada". Para ele, a natureza da empresa —pública ou privada— não deveria ser a principal preocupação, e sim se ela funciona bem ou não.

Não há, porém, consenso em torno do tema. Professor titular do departamento de engenharia sanitária e ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leo Heller está entre os especialistas que criticam enfaticamente o novo modelo.

"[Essa medida] abre espaço para uma ampla participação privada, principalmente naqueles municípios com maior atratividade econômica", disse Heller à rádio da UFMG. Para ele, que também é pesquisador da Fiocruz, restará às empresas públicas as localidades que não interessam ao setor privado.

Em 2033, o ano apontado pelo novo marco como meta de universalização do saneamento, saberemos se as medidas se converteram em boa notícia, como a iniciativa pioneira de dom Pedro 2º, ou se acumulamos mais um fiasco, como no planejamento do sistema de esgoto de Belo Horizonte. Será, então, outra a história a ser contada.

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