Projeto forma 1ª mulher trans a assinar menu de drinques do Hilton no Brasil

Curso voltado à gastronomia, TransGarçonne busca dar oportunidades para a comunidade fora de 'espaços invisíveis' das cozinhas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rochelly Rangel prepara drink no hotel Hilton, na praia de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro Eduardo Anizelli - 26.jun.2023/Folhapress

Rio de Janeiro

Rochelly Rangel conta que saiu de casa aos 15 anos, após sofrer agressões. Desde então, precisou recorrer a inúmeras formas de trabalho informais —de salões de beleza a prostituição. Hoje, aos 36 anos, ela é a primeira mulher trans a assinar um cardápio de drinques para a rede de hotéis Hilton no Brasil, em Copacabana.

O caminho foi árduo. Quando trabalhava na rua, ela começou a usar cocaína para atender clientes, que pagavam mais caro para que ela os acompanhasse no uso que, rapidamente, virou vício.

Sem acompanhamento médico desejado, ela precisou parar de usar hormônios, pois teve uma infecção no fígado. "Fiquei muito magra, alguns diziam até que eu tinha HIV", lembra.

Rochelly Rangel, embaixadora do TransGarçonne, prepara drinque no hotel Hilton, na praia de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 26.jun.2023/Folhapress

O problema fez com que ela procurasse a ajuda da família, com quem se reconciliou. Foi aí que decidiu deixar São Paulo em busca de uma nova vida no Rio de Janeiro.

Com dificuldade para encontrar uma vaga em salões de beleza, ela passou a procurar um trabalho nos quiosques de praia. Nesse movimento, decidiu retomar um hobby antigo, o vôlei.

Foi dessa forma que conheceu Breno Cruz, 41, professor de gastronomia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que lhe apresentou um projeto embrionário para reinserir pessoas trans —que não se identificam com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento— no mercado de trabalho, com foco no setor de gastronomia. Era o TransGarçonne, projeto de extensão da universidade.

Seis meses após o curso, Rochelly conseguiu seu primeiro emprego com carteira assinada, no ramo da gastronomia. Em 2022, venceu a terceira temporada do reality de coquetelaria "Bar Aberto". E finalmente, na última segunda (26), tornou-se a primeira mulher trans a assinar um cardápio de drinques para a rede hoteleira Hilton, no Rio de Janeiro.

Maria Paula Comaru, 48, diretora de vendas e marketing dos hotéis Hilton no Rio de Janeiro, afirma que Rochelly é uma figura importante tanto no ramo brasileiro de bebidas quanto na comunidade LGBTQIAPN+. "Estamos honrados em apresentar seu menu de drinques, que tem uma curadoria especial, inspirada em figuras femininas célebres."

Para ela, o Mês do Orgulho é apenas um dos momentos em que as empresas podem reforçar os princípios de diversidade, equidade e inclusão.

Um dos principais nomes da Revolta de Stonewall, origem do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, celebrado em 28 de junho, a drag queen e ativista americana Marsha P. Johnson é uma das homenageadas por Rochelly Rangel no menu de drinques.

Outros homenageados são Oxum, orixá da fertilidade e do amor, e a jornalista Glória Maria, que morreu em fevereiro deste ano.

Rochelly diz que também está há cinco anos sem usar drogas, em bons termos com a família e é independente financeiramente.

Rochelly fez parte da primeira turma do TransGarçonne, formada em agosto de 2019. O professor Renato Monteiro, 42, idealizador do programa junto com Breno, diz que o projeto foi pensado para que fosse voltado ao mercado de trabalho, do qual, segundo ele, a universidade pública ainda é distante.

Ele afirma que, muitas vezes, pessoas trans são contratadas apenas para ficar nos bastidores de restaurantes, na cozinha e em trabalhos pesados, como limpeza e organização de utensílios, equipamentos e louças. A ideia do TransGarçonne é justamente dar "visibilidade a estas pessoas em espaços de sociabilização, que é o ambiente do salão de um estabelecimento", diz Monteiro.

Homem trans, o professor afirma que passou pelo processo de transição quando já era servidor público. A motivação para criar o curso vem, segundo ele, de um reconhecimento de sua trajetória ser um ponto fora da curva dentro da comunidade.

"Sou um homem branco, de classe média, que conseguiu estudar, que fez doutorado e é servidor público, e este não é o perfil da maior parte da comunidade, muito pelo contrário", diz.

Segundo levantamento realizado pelo projeto TransVida, do grupo Pela Vida, com apoio do governo federal, apenas 15% das 147 pessoas trans entrevistadas no Rio de Janeiro em 2022 tinham carteira assinada.

De acordo com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), na comunidade LGBT+, travestis e mulheres trans, especialmente negras e periféricas, são a maior parcela desempregada, em subempregos e/ou na prostituição. Em razão da violência e exclusão familiar, como foi o caso de Rochelly, pessoas trans têm altos índices de rejeição no mercado formal de trabalho, afirma.

Desde sua criação, em 2019, o TransGarçonne qualificou 40 pessoas para trabalharem como garçons e bartenders, entre outras funções no ramo da hospitalidade. Nesta segunda (26), o projeto começou sua terceira edição, com 20 novos alunos.

O curso dura duas semanas, no campus da UFRJ na Ilha do Governador (zona norte do Rio) e conta com aulas de higiene e segurança, etiqueta profissional, coquetelaria e prática de garçom. Ao final, os alunos passarão por entrevistas e auxílio na produção de seus currículos para serem encaminhados a empregadores.

Das turmas anteriores, 22 pessoas foram contratadas em empregos formais, e outros atuam como freelancers.

Um dos principais parceiros do projeto é o SindRio (Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro), que ajuda a acompanhar as pessoas empregadas, diz Danni Camilo, 49, diretora da instituição.

A empresária destaca que é preciso acompanhamento e adaptação dos estabelecimentos parceiros para receber os contratados. "O empregador precisa preparar o ambiente, não basta somente dar o emprego."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.