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Martin Sandbu

Acordo UE-Mercosul é abordagem inteiramente nova da política comercial

Preocupar-se com métodos de produção não viola a ideia de livre comércio, é uma exigência

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Martin Sandbu

Comentarista de economia europeia do Financial Times

Financial Times

Na próxima semana, os líderes se reunirão na primeira cúpula União Europeia-América Latina em muito tempo. O item mais importante do cardápio é o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, bloco comercial formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. O acordo foi fechado em 2019 após anos de negociações, mas ainda não foi ratificado.

A maior parte da culpa por trás disso é da Europa, onde duas forças impediram sua conclusão –uma tradicional e outra muito mais recente. A tradicional é o protecionismo agrícola. A mais nova, e muito mais interessante, é o movimento da UE para além do que poderíamos chamar de liberalização comercial padrão, para incluir novos elementos em acordos comerciais –neste caso, exigências ambientais e climáticas.

Os países do Mercosul concordaram com provisões climáticas e ambientais –destinadas a proteger a Amazônia do desmatamento–, mas a política verde europeia dominou o processo. Bruxelas foi pressionada a solicitar provisões adicionais para tornar os aspectos verdes do acordo juridicamente vinculativos. É a esses compromissos extras que o Brasil, em particular, tem resistido.

Desmatamento na Amazônia - Bruno Kelly/Reuters

Não devemos esperar um avanço no acordo do Mercosul na cúpula, mas podemos esperar algum encontro político de mentes que permita que um acordo final seja selado em breve. Mas hoje estou menos preocupado com os detalhes das disposições verdes do que com o princípio por trás delas e como isso reflete uma abordagem inteiramente nova da política comercial.

O que há de novo é que os acordos comerciais passaram a incluir não apenas produtos específicos (e até certo ponto serviços), mas também os métodos como eles são produzidos. A atenção do acordo UE-Mercosul para o desmatamento é apenas um dos muitos exemplos.

O mesmo acordo contém uma disposição segundo a qual os ovos só receberão tratamento de importação favorável se tiverem sido produzidos em conformidade com os padrões de bem-estar animal da UE.

A UE não é a única: quando os EUA renegociaram o antigo acordo comercial do Nafta com o Canadá e o México, só estenderam as reduções de tarifas aos carros produzidos por mão de obra paga acima de um determinado valor.

As considerações não convencionais também não são buscadas apenas por meio de acordos comerciais bilaterais. A UE está usando políticas comerciais unilaterais também, como o imposto de fronteira do carbono sobre as importações de países com regulamentação de emissões menos rigorosa do que a do bloco, ou requisitos sobre direitos humanos nas cadeias de suprimentos globais das empresas europeias. Uma nova lei da UE que proíbe a importação de óleo de palma de florestas derrubadas suspendeu suas negociações comerciais com a Malásia e a Indonésia.

Todas essas novas regras comerciais são exemplos de produtos idênticos que recebem tratamentos diferentes, dependendo do método de produção. Isso é legalmente controverso, ou pelo menos novo, como explicou David Henig numa coluna da Borderlex algumas semanas atrás. Tradicionalmente, tratar produtos idênticos de forma diferente tem sido visto como um sinal de protecionismo, a ser justificado com as exceções permitidas pelas regras do comércio internacional.

Curiosamente, a mesma tensão existe na lei dos Estados Unidos, onde a Suprema Corte acaba de manter as restrições de bem-estar animal da Califórnia às vendas de produtos suínos produzidos em outros estados. Da mesma forma, Henig sugere que refinamentos legais são possíveis para permitir a consideração dos métodos de produção e, ao mesmo tempo, prevenir o protecionismo.

Concordo, mas estou mais preocupado com a economia do que com a lei. Que justificativa econômica existe para essas condições extras no comércio se acreditamos que geralmente há ganhos em trocas econômicas voluntárias?

Uma resposta é "externalidades" –o livre comércio nem sempre é eficiente, por isso deve ser um pouco menos livre para alcançar maior eficiência. As tarifas de carbono podem ser um exemplo disso: sem elas, as regulamentações domésticas de carbono simplesmente transferem a produção poluidora para o exterior –"vazamento de carbono"–, com o resultado de que a poluição permanece a mesma, mas os produtos são mais caros.

Mas duas coisas sobre essa resposta me incomodam. A primeira é que o argumento da externalidade não se generaliza facilmente para outras áreas (as galinhas europeias não seriam menos protegidas sem uma cláusula de bem-estar animal no acordo do Mercosul). A outra é que dá como certo que existe uma compensação entre o livre comércio e essas outras considerações.

Acho que há outro argumento mais ambicioso para incluir considerações não convencionais na política comercial, baseadas tanto na eficiência econômica quanto no liberalismo pró-comércio. É o seguinte: os próprios consumidores modernos distinguem entre bens idênticos que são produzidos de maneiras diferentes. Hoje, muitas pessoas se preocupam diretamente se um produto é produzido de maneira ética –digamos, sem o uso de trabalho infantil ou escravo– ou de maneira que ameace o meio ambiente. Uma camiseta feita de algodão dos campos de concentração em Xinjiang é simplesmente um produto diferente de um algodão produzido de forma ética.

Além disso, a mistura de bens com serviços da revolução digital significa que os "métodos de produção" não terminam quando um bem é vendido. Para muitos consumidores, um carro que o espiona enviando dados sobre seu comportamento para um fabricante numa jurisdição diferente é um produto diferente de outro que não faz isso.

Existe uma literatura de pesquisa econômica reduzida, mas importante, sobre "utilidade processual", a ideia de que nos preocupamos não apenas com os resultados que alcançamos, mas com as maneiras como esses resultados são alcançados. Aqui está uma contribuição inicial. É um tópico no qual tenho um interesse particular porque meu próprio PhD foi uma extensa discussão sobre por que e como a economia deve levar em conta as preferências dependentes do processo. (Para os interessados, a versão publicada incluía um modelo matemático de dependência do processo, um experimento demonstrando que as pessoas se preocupam com os processos separadamente dos resultados e um argumento filosófico sobre por que é perfeitamente racional fazê-lo.)

Já que as pessoas se preocupam com os processos de produção, é um erro pensar que levá-los em consideração viola o livre comércio. O livre comércio não pode significar obrigar o consumidor a aceitar a substituição de um produto de sua preferência por outro que considere inferior devido à forma como foi produzido. Claro, há uma necessidade de se precaver contra o protecionismo –argumentações sobre métodos de produção podem ser feitas de má-fé. Mas isso não difere de outras regras de produtos, como proibir a importação de brinquedos com tinta à base de chumbo, por exemplo.

Os comerciantes livres não têm nada de que se envergonhar ao aceitar regras sobre métodos de produção na política comercial. Podemos e devemos estar confiantes em que a nova abordagem da política comercial veio para ficar.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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