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Ignacy Sachs (1927-2023) e o Brasil inacabado

Falecimento do socioeconomista abre a possibilidade de uma nova geração de intelectuais se debruçarem sobre a sua extensa obra

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Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

A avaliação da obra de um intelectual é, geralmente, mais certeira quando não é feita pelos seus contemporâneos. Perde-se a riqueza do contexto, mas ganha-se o espaçamento necessário para a liberdade crítica e a despersonalização do julgamento. O canadense Moishe Postone, o alemão Michael Heinrich, e o escocês Paul Cockshott são figuras essenciais no entendimento ou reinterpretação do pensamento de Marx, ainda que tenham nascido mais de 100 anos depois do autor de "O Capital".

O falecimento de Ignacy Sachs (1927-2023) a 2 de agosto (4ª feira) abre agora a possibilidade de uma nova geração de intelectuais se debruçarem sobre a sua extensa obra. Nascido na Polônia, era naturalizado francês. O obituário do Le Monde ressalta que Sachs abraçou uma teoria do desenvolvimento que evitava o "mimetismo em relação às economias desenvolvidas" e explorava as dinâmicas próprias das economias emergentes. Os jornais poloneses formadores de opinião –Dziennik Gazeta Prawna, Dziennik Trybuna, Gazeta Wyborcza, Nasz Dziennik, Rzeczpospolita– não noticiaram a sua morte.

Sachs escreveu muito e escreveu muito bem. Mais conhecido por ter explorado a possibilidade de o desenvolvimento econômico contemplar as necessidades do meio ambiente, visível por exemplo no livro "Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável", escreveu também densamente sobre trabalho decente, sobre a autolimitação do consumo ou sobre a falsa dicotomia entre agricultura familiar e agronegócio. Pensou sobre economia, sociologia, história e ecologia.

Imagem mostra Ignacy Sachs de terno e com óculos escuros.
Ignacy Sachs durante inauguração do Centro de Educação Espaço Isrrael Pinheiro - Sergio Lima - 20.out.09/Folha Imagem

Injetava nas suas publicações as suas próprias referências de vida. Sachs viveu na Índia na década de 50, onde fez o seu doutorado, e frequentemente o seu trabalho aludia a intelectuais indianos como o economista Amartya Sen, o ambientalista e desenvolvimentista Ashish Kothari ou o especialista em segurança alimentar M.S. Swaminathan. A partir da sua ligação íntima com a Polônia, escreveu sobre as limitações do socialismo no Leste Europeu durante a Guerra Fria.

Apesar do atual contexto de individualismo científico –expresso em patentes, solenidades, premiações, notas de louvor e assinatura de artigos científicos– o conhecimento nunca é verdadeiramente autoral. Quem o produz, tanto é pai quanto filho. O trabalho de Sachs está, por isso, instalado numa longa cadeia reflexiva, que o antecede e procede, sobre as oportunidades e limitações do crescimento econômico e os impactos em temas ambientais.

A segunda metade do século 20 foi pródiga nesta área. Herman Daly (1938-2022), um economista ecológico, ficou conhecido pelo conceito de "economia de estado estacionário" e a ideia de que o crescimento econômico deve ser limitado pelas restrições ecológicas. Amartya Sen (1933-), uma das principais referências de Sachs, enfatizou as interconexões entre pobreza, desigualdade e degradação ambiental. Elinor Ostrom (1933-2012) venceu o Prêmio Nobel por seu trabalho acadêmico em governança dos recursos comuns. De forma semelhante a Sachs, estes autores adotaram uma visão humanista, sustentável e holística do desenvolvimento.

O economista polonês marxista Michal Kalecki (1899-1970), que Sachs apontava como um de seus gurus, é igualmente conhecido por ter desenvolvido uma abordagem macroeconômica abrangente similar à de Keynes. O obituário do Le Monde também reforça que Sachs é herdeiro de Raul Prebisch (1901-1986), um dos líderes intelectuais da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), e dos desenvolvimentistas Hans Singer (1910–2006) e Albert Hirschman (1915-2012). É neste lago de referências teóricas que a ONU se inspirou para cunhar termos como "ecodesenvolvimento" ou "desenvolvimento sustentável" nas décadas de 1970 e 1980.

Sachs não era um marxista ortodoxo, mas certamente se associaria à ideia de que o marxismo poderá ser útil na adoção de uma visão de uma sociedade sustentável para além do capitalismo. A conexão entre Marx e a ecologia, negligenciada durante tanto tempo, atingiu um ponto alto com os estudos de Kohei Saito em "O Ecossocialismo de Karl Marx" e de John Bellamy Foster em "A Ecologia de Marx".

É também com os pés fincados neste ecossistema que Sachs mostra, já no ocaso da vida, um certo saudosismo pelos "trinta anos gloriosos" (1945-1975) da economia capitalista, expressão cunhado pelo economista francês Jean Fourastié para designar um momento de expansão econômica com resultados positivos nas agendas sociais.

Sachs defendeu a presença do Estado no desenvolvimento econômico, por intermédio do financiamento de obras públicas de alta intensidade em mão de obra. E o seu envolvimento na preservação do meio ambiente. O debate, na sua ótica, não poderia ficar centrado apenas no crescimento do PIB. As suas ideias serviram de cesta básica para muitos desenvolvimentistas brasileiros. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores destacou que "Sachs foi amigo de três gerações de economistas, cientistas e diplomatas brasileiros."

Talvez uma das características que mais se destacam no economista polonês é a sua inclinação para descer do púlpito acadêmico para buscar soluções terrenas para os problemas que encontrava. No Brasil, que visitava com muita frequência, manteve uma relação próxima com vários governos, acadêmicos (por exemplo, Ladislau Dowbor e Ricardo Abramovay) e ONGs.

No início dos anos 2000, a especialista em sustentabilidade Nelmara Arbex acompanhou a contribuição de Sachs para o desenvolvimento das primeiras estratégias do recém-criado Instituto Ethos: "ele foi uma das pessoas mais importantes para que nós entendêssemos que a responsabilidade social corporativa no Brasil, que é a grande missão do Instituto, só poderia ser promovida se olhássemos para a economia brasileira como um grande oceano de economia informal com algumas ilhas de formalidade".

A sua contribuição para o debate e políticas públicas teve também uma dimensão internacional. Participou ativamente na Eco-92 e Rio+20 no Rio de Janeiro, tal como já o tinha feito na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972. Conjuntamente com o Secretário-Geral Maurice Strong (1929-2015) e o seu braço direito Marc Nerfin (1930-2015), deixou as suas impressões digitais na declaração final da Conferência.

Ignacy Sachs pode também ser visto como um soldado de alta patente no exército de brasilianistas –acadêmicos geralmente vinculados a universidades americanas e europeias, com conhecimento empírico sobre o Brasil convertido em abundante bibliografia. Destacam-se no mesmo contingente o historiador britânico Kenneth Maxwell, o economista Werner Baer, o biólogo Thomas Lovejoy ou o cientista político Albert Fishlow. Aliás, são centenas os biólogos, etnólogos, economistas, antropólogos, sociólogos e escritores estrangeiros que analisaram as vísceras e os músculos do Brasil. Muitos deles, panglossianos como Sachs, reforçam o "potencial", as "vantagens comparativas", e "riqueza natural" do país. E os brasileiros adoram os estrangeiros que lhes digam que são um "país do futuro".

Sachs gostava do Brasil. Gostava mesmo. Acreditava que poderia tornar-se uma potência global em bioeconomia. Mas quando um dia uma jovem jornalista lhe perguntou se já tinha apresentado as suas ideias sobre desenvolvimento sustentável aos governos brasileiros, Sachs respondeu: "Sim. Conversas houve muitas, agora vamos ver o que vai acontecer." Sachs morreu um dia antes de sabermos que o desmatamento no Cerrado atingiu os maiores níveis já registrados. Infelizmente, ainda falta acontecer muita coisa.

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