Inteligência artificial agora está a serviço da gestão de fortunas

Gerentes de patrimônio adotam a IA para melhorar o atendimento, mas há dúvidas se a máquina tem o toque mágico

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Philip Coggan
Financial Times

A inteligência artificial pode vencer as melhores mentes humanas no xadrez e até mesmo no Go, o jogo de tabuleiro japonês em que há mais movimentos possíveis do que átomos no universo conhecido. Portanto, preparar um programa de IA para superar o mercado de ações pode até parecer uma tarefa fácil, em comparação.

No entanto, muitas empresas de gestão de fundos que estão planejando usar IA não acham que ela esteja pronta para cuidar de todo o processo de investimento. "Não existe um sistema em que um gestor de fundos possa deixar o modelo de IA solto e depois sentar na praia para tomar margaritas", diz Chris Ford, da Sanlam Investment Management, com sede em Londres.

A IA será cada vez mais usada em áreas específicas da gestão de riqueza, da realização de análises corporativas até o gerenciamento de negócios, passando por pesquisa de clientes e marketing. Com o tempo, essas técnicas poderão ter um efeito significativo no setor de gestão de fundos. No entanto, a IA não assumirá os negócios e, pelo menos em curto prazo, os clientes talvez nem notem uma grande diferença no serviço.

robô toca mão humana
Montagem em que a mão humana toca a mão de um robô. - Getty Images

Não há nada de novo em usar computadores para investimentos. O rastreamento de índices, em que os fundos imitam um benchmark como o FTSE 100, é um processo amplamente automatizado. E muitos gestores de fundos usam programas de computador para tentar superar o mercado, geralmente analisando dados de negociações anteriores para identificar títulos baratos ou padrões de negociação que podem ser repetidos.

Na década de 1980, Jim Simons, um matemático premiado, criou a Renaissance Technologies, um fundo de hedge que usou análises estatísticas sofisticadas para obter um retorno anual de 37% após taxas (muito substanciais) em seu fundo Medallion entre 1988 e 2021. A todo momento, computadores em todo o planeta estão vasculhando os dados em busca de oportunidades lucrativas, não apenas em ações, mas também em títulos, commodities e todos os outros ativos concebíveis.

Robôs têm 'taxa de alucinação'

No entanto, à medida que realizam suas pesquisas, esses programas de computador alteram as próprias condições do mercado que estão estudando. Se os computadores decidirem, por exemplo, que ações individuais que caíram 50% nos últimos 12 meses agora estão baratas, eles desencadearão uma onda de pedidos de compra. O preço vai subir e o barateamento vai evaporar. Os que comprarem primeiro vão se dar bem, mas não os últimos da fila. Por sua vez, isso pode desencadear uma onda de ordens de "venda" que reduzirão o preço.

Isso nos traz de volta a um problema que aflige a gestão de fundos, seja ela conduzida por humanos ou máquinas. O desempenho do índice representa o retorno do investidor médio. Portanto, por definição, nem todo gestor de fundos pode vencer o mercado. Em um mundo onde a maioria dos gestores de fundos estivesse usando IA, esses programas estariam se comparando. Como num jogo de xadrez entre jogadores infalíveis, o resultado pode ser um impasse. Até o Renaissance produziu retornos negativos em seus fundos públicos em 2020 (o Medallion não está mais aberto ao público) e sofreu resgates de investidores.

Outra razão pela qual poderá demorar um pouco até que a IA domine o mercado é que a tecnologia atualmente não é confiável. Existem alguns exemplos bem conhecidos de grandes modelos de linguagem (como o ChatGPT) que produzem informações falsas; um advogado dos Estados Unidos usou o programa para compilar uma petição judicial, mas depois descobriu que os precedentes citados eram completamente inventados.

A Betterment é uma empresa de investimentos dos EUA que oferece "aconselhamento robótico", principalmente para investidores de varejo. John Mileham, diretor de tecnologia do grupo, trabalha no setor de tecnologia há mais de 25 anos, incluindo um cargo de cofundador de um aplicativo de poupança. Ele diz que alguns dos grandes modelos de linguagem têm uma "taxa de alucinação" e que, até que ela diminua, usar IA para dar conselhos de investimento "apresenta riscos quando você é um fiduciário".

Gestão de patrimônio envolve processos manuais propensos a erros

Alguns clientes ricos podem temer que a IA resulte em outra mudança: o desaparecimento dos gerentes de relacionamento humano, muitas vezes considerados o coração do setor. Não é provável que isso aconteça em curto prazo. Mas as empresas tradicionais de gestão de fundos precisam desesperadamente melhorar sua tecnologia, que está atrasada em relação ao serviço oferecido pela nova geração de fintechs.

"A cadeia de valor de gestão de patrimônio está repleta de processos manuais complicados, demorados e propensos a erros", afirma um relatório da consultoria Capgemini. O relatório publicado neste verão descobriu que apenas um em cada dois clientes ricos está satisfeito com sua interação digital com os gestores de fundos.

As empresas de gestão de fundos esperam que a IA possa permitir que muitas consultas de clientes sejam respondidas por "chatbots". O grupo de capital de risco Andreessen Horowitz, do Vale do Silício, diz que um grande modelo de linguagem que foi treinado em conversas anteriores com clientes, juntamente com as especificações de produtos, deve ser capaz de responder instantaneamente a todas as perguntas sobre os fundos de uma empresa.

Na Bernstein Wealth Management, Tuppence Russo, chefe de infraestrutura de atendimento ao cliente, diz que a empresa desenvolveu um chatbot para seus consultores e equipe de vendas. O chatbot levou cerca de seis a oito meses para ser desenvolvido, pois a empresa precisava garantir que os conselhos oferecidos fossem precisos.

A Bernstein oferece alguns produtos baseados em classes alternativas de ativos, cujos detalhes podem ser muito complexos. Quando os clientes ligam com uma pergunta complicada, os assessores podem agora consultar o chatbot para uma resposta imediata, perguntando, por exemplo: "Em que tipos de ativos o fundo investe?"

O uso de chatbots para interagir diretamente com os clientes –já adotado pela Vanguard, por exemplo– se tornará mais prevalente, o que dificilmente incomodará os investidores mais jovens. "Cerca de 70% das pessoas da Geração Z são totalmente digitalizadas, assim como 60% da geração do milênio", diz Oliver Bilal, que lidera os negócios de distribuição da Invesco na Europa, no Oriente Médio e na África. "Portanto, a maioria dos futuros clientes usará soluções digitais. A IA será a chave para liberar o potencial de atendimento aos clientes no futuro."

Bilal tem 23 anos de experiência em serviços financeiros, tendo trabalhado no UBS e no Natixis antes de ingressar na Invesco.

Mas as empresas de gestão de patrimônio entendem que muitos clientes ricos querem o conforto de falar com um indivíduo com nome, que João ou Maria estão cuidando de seus portfólios. Até agora, a IA não resultou em perda de empregos. Em vez disso, onde os gestores de fundos estão implantando a IA, ela está sendo usada como uma ferramenta para ajudar sua equipe a lidar com os clientes. "Nosso objetivo é melhorar a retenção e a satisfação do cliente", diz Aaron Bates, que lidera a equipe de patrimônio líquido ultraelevado da Bernstein Wealth Management, depois de trabalhar para o governo federal no escritório do Representante Comercial dos EUA. "A IA nos permite focar em permanecer competitivos e sermos relevantes para a próxima geração de detentores de riqueza."

O fascínio da IA pode enviar os gestores de fundos em diferentes direções. A BlackRock, maior grupo mundial de gestão de fundos, criou o BlackRock AI Labs, embora tenha mantido silêncio sobre o que acontece lá. Outros gestores de fundos são mais francos sobre o que estão fazendo.

Na Sanlam Investment Management, Ford usa a IA para ajudar a identificar empresas em todos os setores nos quais ele deseja investir. A Sanlam tem um banco de dados de empresas listadas construído com base em dados compilados por bolsas de valores e reguladores, como a Autoridade de Conduta Financeira do Reino Unido e a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos. Como as empresas enfrentam sanções por declarações falsas, é menos provável que afirmem que têm um grande negócio relacionado à IA se não o tiverem. A Sanlam usa plataformas de reconhecimento óptico de caracteres, processamento de linguagem natural e tradução para selecionar as empresas que estão se beneficiando da IA.

Máquinas não são capazes de produzir um 'David'

Apenas compilar essas informações não é suficiente, diz Ford. A mera menção de IA em uma declaração corporativa não a torna um acréscimo adequado ao portfólio. Muito depende de se a IA terá um impacto positivo significativo nos negócios. A habilidade humana é necessária para colocar essa informação em contexto. "Se eu desse a você uma foto do ‘David’ de Michelangelo, junto com ferramentas e um bloco de mármore, e dissesse ‘vejo você em três semanas’, ficaria desapontado com o resultado", acrescenta Ford.

Um relatório da consultoria Deloitte sugere que os gestores de fundos usarão IA para escanear declarações de lucros corporativos para avaliar o sentimento do gerente, analisar dados alternativos, como previsões do tempo e movimentos de navios porta-contêineres, e usar o tráfego do site corporativo como mais um indicador de crescimento dos negócios. De certa forma, os gerentes usarão a IA como um mecanismo de busca mais eficiente.

Os gestores de fundos também podem usar IA para detectar fraudes. A Andreessen Horowitz diz que um grande modelo de linguagem que foi treinado em relatórios anteriores de atividades suspeitas "deve ser capaz de identificar um conjunto de transações que indicam um esquema de lavagem de dinheiro". A IA também pode ajudar as empresas de investimento a garantirem que vão se manter do lado certo das autoridades reguladoras; os gestores de fundos enfrentam uma série de requisitos de compliance de vários reguladores em diferentes países.

Todas essas coisas serão muito úteis. De fato, muitas empresas de serviços usarão IA para os mesmos propósitos, reduzir o ônus da burocracia ou melhorar a eficiência do relacionamento com o cliente. Outras empresas financeiras também usarão IA para detecção de fraudes ou para compliance regulatória.

Existem algumas funções mais específicas do setor que a IA pode desempenhar. O Man Group é um gigante da gestão de fundos, mais conhecido por sua abordagem de investimento baseado em quantidade.

Gary Collier tornou-se recentemente diretor de tecnologia da Man, após uma carreira em desenvolvimento de software e gerenciamento de tecnologia. Ele diz que o grupo usou o aprendizado de máquina para gerenciar seus negócios. A abordagem usa aprendizado por reforço –processo que usa tentativa e erro e recompensas para treinar o software a dominar tarefas complexas– para obter uma melhor execução e reduzir o impacto dos pedidos no mercado. Esse é um fator importante, já que o grupo negocia ativos no valor de US$ 7 trilhões ao longo de um ano.

A tecnologia pode ajudar a empresa de três maneiras, diz Collier: ajudar os profissionais a inovar, ajudar o grupo a responder à mudança e tornar a empresa mais eficiente. Para que isso aconteça, diz ele, a tecnologia tem que ser colocada nas mãos de profissionais. Como parte dessa estratégia, o grupo tornou a tecnologia ChatGPT acessível à empresa por meio de um portal chamado Man GPT.

Bilal, da Invesco, diz que a IA também será útil para fornecer os produtos específicos que os clientes desejam. Veja o mundo do investimento ético, focado em fatores ESG (ambiente, social e governança). Muitos fundos ESG são bastante abrangentes em seu escopo, mas os clientes podem ter princípios mais sutis; determinados a evitar ações de tabaco, mas descontraídos em relação ao álcool, por exemplo. A IA pode ser muito mais rápida na busca do universo de investimentos para entregar um portfólio adaptado aos princípios de cada cliente.

Na maioria dos casos, os clientes provavelmente não perceberão o efeito da IA nas operações de seus gestores de fundos. Os retornos não irão melhorar de repente, nem seus consultores de confiança serão substituídos por uma máquina sem alma, pelo menos não no topo do mercado. Em vez disso, as empresas de investimento usarão a IA para tornar suas operações mais eficientes e suas interações com os clientes mais eficazes.

Alguma economia de custo será repassada aos clientes na forma de taxas mais baixas? Parece provável que a maior influência a esse respeito não será a ascensão dos robôs, mas as forças impiedosas da competição de mercado lideradas por rastreadores de índices de baixo custo.

A IA pode acabar virando o mundo de cabeça para baixo, mas quando se trata de gestão de fundos, as mudanças serão incrementais, não revolucionárias.

(Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves)

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