Venda de passagem sem data gerou crise da 123milhas, dizem especialistas

Para consultores, modelo de negócios falhou ao não prever aumento do preço das passagens

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São Paulo

Na última sexta (18), a plataforma de venda de passagens aéreas 123milhas suspendeu sua linha promocional de viagens flexíveis, que costumam ser mais baratas, e deixou consumidores sem a opção de devolução do dinheiro.

Foram oferecidos vouchers, mas há casos em que é necessário pagar o dobro para conseguir uma nova passagem para o mesmo destino.

Na opinião de consultores e especialistas ouvidos pela Folha, vender sem data certa para entregar explica a origem da crise na companhia.

Segundo a empresa, a interrupção ocorreu "devido à persistência de circunstâncias de mercado adversas, alheias à nossa vontade" e será válida, em princípio, de setembro a dezembro.

Fundada em 2016 em Belo Horizonte pelos irmãos Ramiro Julio Soares Madureira e Augusto Julio Soares Madureira, a 123milhas também é dona da Hot Milhas e, em janeiro, comprou a MaxMilhas.

A operação cresceu rápido. Em 2022, a 123milhas foi o segundo maior anunciante do país, com investimento publicitário de R$ 1,28 bilhão, segundo o ranking Agências & Anunciantes, anuário publicado pelo jornal Meio & Mensagem. No ano anterior, a 123milhas havia sido o maior anunciante do país, com aporte de R$ 2,37 bilhões na compra de espaço publicitário.

mão segura celular onde se lê na tela: 123 Milhas
Aplicativo da plataforma de venda de passagens aéreas 123 Milhas. - Luis Lima Jr/Fotoarena/Agência O Globo

Por meio do seu modelo de negócios, a 123milhas permite que usuários comprem passagens aéreas emitidas através das suas próprias milhas, acumuladas em programas de fidelidade de companhias aéreas (Azul, Gol e Latam). Já os sites Hot Milhas e MaxMilhas compram milhas dos clientes e pagam em dinheiro.

As companhias aéreas não gostam dessa ideia e tentam evitar, inclusive com ações na Justiça, que os programas de fidelização sejam substituídos por um mercado consolidado de compra e venda de milhas. No Brasil, não existe uma regulamentação sobre a questão. Com isso, alguns juízes concluem que as milhas aéreas são de propriedade do consumidor e, como tal, podem ser negociadas.

"A 123milhas ganha nessa intermediação, de compra e venda de milhagens", diz Felipe Souza, economista-chefe da consultoria Lafis, especializado na cobertura do setor de transportes. Segundo ele, as "circunstâncias de mercado adversas" apontadas pela empresa podem se referir aos preços de passagens aéreas acima do esperado.

"Se meses ou anos atrás a empresa se comprometeu a vender por 'X' milhas uma passagem aérea em setembro de 2023, mas descobriu que essa passagem hoje custa '2X', ela não vai conseguir honrar seus compromissos", afirma Souza. "O que é bastante preocupante para o período de setembro a dezembro, que é o de pré-temporada, quando os preços estão mais baixos que os da alta temporada, nas férias", diz.

Os ganhos da 123milhas estão na mira da CPI das Pirâmides Financeiras. Segundo o deputado federal Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), presidente da comissão em andamento na Câmara, o colegiado vai investigar a empresa.

Procurada pela reportagem, a 123milhas afirma que recebeu notificação da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) e está respondendo às perguntas do órgão. Sobre investigação da CPI da Pirâmides, a empresa não comenta.

Felipe Souza destaca que é difícil saber exatamente o que acontece com empresas como 123milhas e Hurb –que também entrou em crise em abril–, uma vez que as companhias têm capital fechado e não divulgam suas informações financeiras.

"Mas é possível que essas empresas já estivessem trabalhando de maneira deficitária nos últimos anos. Com o preço crescente das passagens aéreas, chegou a um ponto em que elas já não conseguem trabalhar com o modelo flexível, sem data definida, porque os custos subiram", afirma.

O consultor André Castellini, sócio da Bain & Company, concorda. "A 123milhas possivelmente não investe o que ganha na compra de passagens vendidas no modelo flexível", afirma. "Quando decide comprar o bilhete, o preço está além do que ela havia projetado", diz. "É como uma empresa de trading."

A pandemia deixou o setor de turismo paralisado. Mas, desde 2021, as vendas de passagens vêm se recuperando, especialmente no turismo nacional. De acordo com dados do IBGE, o preço das passagens aéreas subiu 17,59% em 2021 e 23,53% em 2022, considerando a variação pelo IPCA.

De acordo com Castellini, diversos fatores pesam para este aumento. "Houve a alta do preço do combustível de aviação, ao mesmo tempo em que as dívidas das aéreas tiveram que ser renegociadas no pós-pandemia, o que elevou o nível de endividamento das empresas", afirma. "O preço das passagens subiu, mas apenas em um patamar suficiente para que as aéreas continuem operando, sem quebrar."

Na opinião de Marcelo Oliveira, assessor jurídico da Abav (Associação Brasileira de Agências de Viagens), o cerne dos problemas está na venda de passagens sem data definida. "É um modelo de negócios de altíssimo risco", afirma. "As agências de viagens podem emitir passagens apenas dentro de um período de 320 dias, porque muitos fatores podem impactar o preço dos bilhetes: o câmbio, o preço dos combustíveis, os tributos, a situação macroeconômica local ou global, considerando uma guerra", diz.

"Empresas com o modelo de negócios da 123milhas vendem os direitos de viagem, mas sem terem certeza se poderão entregar o que venderam. É algo que exige uma regulação."

123milhas disse que está devolvendo integralmente os valores pagos pelos clientes, em vouchers acrescidos de correção monetária de 150% do CDI (títulos emitidos pelos bancos que acompanham a taxa básica de juros, a Selic). O voucher poderá ser utilizado para compra de passagens, hotéis e pacotes na 123milhas, e pode ser solicitado neste link ou pelo WhatsApp (31) 99397-0210.

Depois de ser alvo de uma ação do Ministério da Justiça em abril deste ano, após registrar uma disparada de reclamações de cancelamentos de reservas em hotéis e pousadas, o Hurb (antigo Hotel Urbano) viu a Latam suspender a venda de passagens no site da companhia, devido a uma dívida de R$ 13,6 milhões.

Questionado pela Folha, o Hurb respondeu, por meio da sua assessoria de imprensa, que a decisão da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), de proibir a venda de pacotes flexíveis, tomada em maio, segue vigente e que a companhia vem cumprindo a determinação do órgão. "A empresa aproveita para reiterar que atua sempre prezando pelo melhor interesse de seus consumidores e parceiros", informou.

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