Como a história da babá da Shakira reflete a trajetória de milhões de domésticas nos EUA

Liliana Melgar trabalha com Shakira e ganhou fama ao aparecer no clipe "El Jefe"

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Bianca Padró Ocasio
The New York Times

A história de Liliana Melgar, boliviana que imigrou para a Espanha há 15 anos, é a mesma de milhões de domésticas que limpam, lavam, cozinham e cuidam de crianças em casas de todas as partes do mundo. A diferença é que por acaso ela trabalha na casa de Shakira.

O último vídeo da superestrela colombiana, "El Jefe" (O patrão), com participação da banda mexicana Fuerza Regida, mostra a vida da imigrante pobre com sonhos ambiciosos trabalhando eternamente para maus patrões ricos sem nunca receber salário justo. Já quase no fim da música de três minutos, Melgar aparece encarando a câmera enquanto sua patroa canta: "Lili Melgar, esta canção é para você, que nunca recebeu a indenização."

Liliana Melgar é empregada doméstica da cantora Shakira e aparece no clipe "El Jefe"
Liliana Melgar é empregada doméstica da cantora Shakira e aparece no clipe "El Jefe" - Reprodução/YouTube

Calcule o que falta para sua independência financeira

O clipe rendeu a Melgar —que supostamente foi demitida pelo jogador espanhol de futebol Gerard Piqué antes de ser recontratada por sua ex-companheira— uma visibilidade inesperada, colocando em destaque o perfil de aproximadamente 76 milhões de empregadas ao redor do mundo.

O The New York Times tentou falar com Shakira, que atualmente mora no Sul da Flórida, e Melgar, mas não recebeu resposta de nenhuma das duas. O agente que representa o jogador de futebol tampouco respondeu ao nosso pedido de esclarecimento.

As empregadas domésticas têm um papel fundamental nos lares latino-americanos e caribenhos, onde representam cerca de 20% de todas as mulheres no mercado de trabalho, de acordo com a OIT (Organização Internacional do Trabalho)— o segundo nível mais alto do mundo, perdendo apenas para o Oriente Médio.

A participação especial de Melgar no vídeo, que teve mais de 57 milhões de visualizações no YouTube, é meio que uma vingança —promovida pela patroa famosa e rica— pela demissão, mas a verdade é que seu caso é uma exceção em relação a esse posto nos últimos anos.

Até 2020, as domésticas na maioria dos países latino-americanos e caribenhos tinham conquistado direitos que limitavam as horas semanais de trabalho, estabeleciam um salário mínimo, geravam incentivos para que os empregadores fizessem um contrato oficial e impunham restrições de idade.

A pandemia, porém, castigou várias economias da região, atingindo principalmente a categoria, fazendo com que muitas perdessem o emprego. O setor, aliás, ainda não se recuperou totalmente. "Parece que continuamos vivendo em tempos de Covid. Se há redução de salário, por exemplo, você nunca mais consegue recuperar", afirma Ernestina Ochoa, doméstica de 53 anos de Lima, no Peru, que ajudou a fundar o grupo de defesa União Nacional das Empregadas Domésticas.

Muitos dos direitos que as domésticas conquistaram antes da pandemia se baseavam na primeira leva de leis na Bolívia, no Peru, no Uruguai e na Colômbia, conquistadas por aquelas que se organizaram em sindicatos. "O trabalho doméstico remunerado existe basicamente nas sociedades com grande desigualdade econômica, e o acesso a ele é dado como certo só para quem nasceu em uma classe mais privilegiada", explica Merike Blofield, professora de ciências políticas da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, e especialista em trabalho doméstico na América Latina.

Embora a maioria dos governos da região tenha ratificado acordos internacionais para garantir direitos trabalhistas à classe, muitos grupos defensores dizem que a pandemia dificultou a responsabilização dos empregadores que violam as leis. Em alguns casos, a empregada chegava a ser impedida de sair da casa onde trabalhava por causa do medo de que contraísse Covid e contaminasse os familiares do patrão.

Ernestina Ochoa ajudou a fundar o grupo de defesa União Nacional das Empregadas Domésticas, que luta por direitos das domésticas
Ernestina Ochoa ajudou a fundar o grupo de defesa União Nacional das Empregadas Domésticas, que luta por direitos das domésticas - Angela Ponce/The New York Times

A proporção de domésticas que trabalham com contrato e têm direito a benefícios e proteções oficiais —em um processo conhecido como formalização— é desigual na região. Segundo um estudo feito em 2020 pela OIT, enquanto no Uruguai esse número chega a 70%, em diversos países centro-americanos e caribenhos não passa de 10%.

Nesse mesmo ano, foi aprovada uma lei no Peru exigindo que a doméstica tenha, pelo menos, 18 anos, mas, de acordo com Ochoa, o governo até agora mostrou pouco interesse de impor o estatuto. "Atualmente, ainda existem muitas meninas e adolescentes trabalhando. Os governantes não veem o que está acontecendo, e os pais não têm condições de impedi-las porque sabem que não têm um respaldo oficial", explica

A complicada relação entre as famílias latino-americanas e as empregadas de quem dependem passou a ser discutida mais abertamente de uns anos para cá, em parte por ser abordada na cultura popular, inclusive na música e no cinema, o que ajudou a chamar a atenção para uma força de trabalho praticamente invisível.

Um exemplo é o filme "Roma", que se passa no México dos anos 70, e mostra uma babá indígena que cuida de uma família branca na Cidade do México e acaba se imiscuindo em seus dramas diários. O filme, lançado no fim de 2018, estimulou um debate sobre a visão que os latino-americanos têm dessas profissionais, considerando-as parte da família, ainda que sejam mal pagas, exploradas ou agredidas.

E em 2011 teve a revista colombiana que publicou a foto em que se via uma família branca e rica, sentada em um terraço opulento, enquanto duas serviçais negras com bandeja de prata nas mãos apareciam ao fundo, gerando grande revolta e enfatizando as divisões raciais e sociais entre empregadas e patrões. Por outro lado, o país viveu um momento histórico em 2022, quando elegeu a primeira vice-presidente negra, Francia Márquez, que já foi empregada.

Para Santiago Canevaro, sociólogo argentino que escreve sobre o tema, o trabalho doméstico é muito comum na região porque ali há menos acesso a serviços privados ou garantidos pelo governo, como creches e/ou casas de repouso, do que nos países desenvolvidos. "Com a entrada em peso das mulheres no mercado de trabalho, as famílias se tornaram mais dependentes de babás e domésticas, muitas das quais nem sempre estão conscientes de seus direitos. Com isso, acabam sendo tratadas como objeto. De fato, se e quando o casamento não dá certo, uma das decisões a tomar é que destino dar à empregada."

Uma vez que a discriminação contra os grupos marginalizados ainda é muito grande no continente, muitas mulheres negras e indígenas se voltam para o serviço doméstico como a única maneira de manter a si e à família, quase sempre sendo exploradas, como destacam os grupos de defesa. "Impor-se no ambiente de trabalho é uma luta constante. É preciso deixar sempre claro que, independentemente de ser negra e pobre, tenho uma história e um nome. Meu nome é Ernestina", conclui Ochoa.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.