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Obsessão de argentinos por dólar ajuda a explicar sucesso de Milei, diz socióloga

Para Mariana Luzz, que estudou a moeda como fenômeno social no país, futuro do próximo presidente depende de domar inflação

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São Paulo

Logo nas primeiras páginas de "El Dólar: Historia de una Moneda Argentina", os pesquisadores Mariana Luzzi e Ariel Wilkis narram a história de uma competidora em um programa de perguntas na TV.

Ela precisava acertar qual das opções correspondia à cotação correta do dólar em uma determinada data, o tipo de pergunta que só seria fácil para um telespectador argentino responder —para dificultar, todas as alternativas, por mais distantes que fossem, poderiam ser verdade em algum período recente.

Mariana Luzzi, socióloga argentina e pesquisadora do Conicet
Mariana Luzzi, socióloga argentina e pesquisadora do Conicet - Revista Acción, no YouTube

O livro foi lançado em 2019 e conta a relação passional dos argentinos com a divisa norte-americana. Começa nas primeiras restrições à aquisição da moeda no início do século 20, passa pelo conturbado ano em que o peso deixou de valer um dólar e termina no governo do ex-presidente Mauricio Macri, que recriou a limitação de compra.

A obra ainda não está disponível em português, mas acaba de ganhar uma versão em inglês e deve ter uma edição ampliada em espanhol no ano que vem, já com o novo presidente eleito.

A desconfiança dos argentinos em relação à sua moeda e a percepção de que o dólar é uma espécie de salva-vidas em momentos de crise faz parte do cotidiano, lembra Luzzi, em entrevista à Folha antes das eleições no país. "É um hábito argentino enxergar nos movimentos do dólar informações importantes sobre o que acontece em termos políticos e econômicos", diz.

A simbologia adquirida pela moeda no país também ajuda a explicar o sucesso da candidatura à Presidência do ultraliberal Javier Milei, que venceu o atual ministro da Fazenda, Sergio Massa, neste domingo (19, e tem na dolarização da economia uma de suas principais promessas.

Com uma inflação anual que ronda os 140%, a capacidade de recuperar a economia vai definir a sorte do próximo presidente, avalia a socióloga. "Vai ser preciso mostrar bons resultados em um prazo relativamente curto", diz ela.

A Argentina precisaria de pelo menos uma década de estabilidade para que a população voltasse a confiar em sua moeda?
Poderíamos dizer que isso funcionou no Brasil [após o Plano Real], mas acontece que na Argentina tivemos uma década de estabilidade que terminou em uma catástrofe [a crise de 2001]. Longe de fortalecer a confiança da população em sua moeda, isso levou a uma destruição.

Em termos gerais, a estabilidade monetária que a Argentina viveu na década de 1990 foi construída sobre aquela base, da equivalência entre um peso e um dólar, e a saída da paridade não ajudou na construção da confiança no país. Foi algo que não reforçou a independência e a autonomia e que tem consequências até hoje, tanto é assim que um dos candidatos com chance de ganhar a eleição propõe o abandono da soberania monetária.

Seja com a vitória de Sergio Massa ou de Javier Milei, a preferência dos argentinos pelo dólar deverá permanecer igual?
Dependendo de quem ganhar as eleições, vai haver muita diferença na condução da política econômica e, em particular, da política monetária. O ex-presidente Mauricio Macri e a candidata derrotada de sua força política, Patricia Bullrich, fizeram uma série de exigências para condicionar seu apoio a Milei, uma delas era a não liberação da venda de órgãos e outra era sobre a [preservação da] educação pública, mas não disseram nada sobre a política econômica.

O modelo de Milei tem duas premissas importantes, e ele não está disposto a negociá-las: a dolarização e o fim do banco central. No fim, elas significam a mesma coisa, já que a adoção da moeda norte-americana pela Argentina supõe que não exista mais um banco central para emitir uma moeda nacional, ele apenas ocuparia outras atividades, como a regulação de entidades financeiras.

Parte do nosso argumento central no livro era que o dólar é uma moeda popular na Argentina. A população está muito familiarizada com essa moeda, seja por usá-la em transações no mercado imobiliário e como forma de poupança, seja pelo hábito argentino de enxergar nos movimentos do dólar informações importantes sobre o que acontece em termos políticos e econômicos.

Esses comportamentos são construções de longo prazo que nenhuma decisão de governo, de Milei ou de qualquer outra pessoa, seria capaz de mudar.

A candidatura de Milei é resultado da situação econômica argentina ou ele teria chance mesmo em um cenário de inflação controlada?
Como em qualquer processo social, é muito difícil encontrar uma única causa —com a candidatura de Milei não é diferente. Sem dúvida, há um contexto econômico que o favorece, com a persistência da inflação de maneira estrutural, e o efeito que ela tem na erosão dos salários dos trabalhadores.

Tivemos outros momentos de inflação elevada antes, mas um agravante hoje é que o mercado de trabalho é muito mais precarizado do que em outros momentos. Ter tudo isso no horizonte, é claro, contribui para que as pessoas busquem uma mudança, e as pessoas vão parar para escutar quem fizer promessas assim e apareça como um 'outsider', apesar de Milei ser um deputado nacional e de 'outsider' não ter nada.

Um dos argumentos que escuto para o voto nele é que ele é alguém que nunca foi testado, que não tem passado e que vem dizer algo que nenhum outro disse, então, merece uma oportunidade. Agora, esse discurso também poderia ser aplicado à esquerda tradicional argentina, trotskista, que nunca chegou ao poder. Mas isso não aconteceu, a FIT [Frente de Esquerda e dos Trabalhadores, representada no primeiro turno pela deputada Myriam Bregman] não cresceu em votos nesta eleição.

O que mais poderia explicar, então, esse movimento?
Há uma deterioração, uma precariedade instalada. Milei vem para destruir um Estado que historicamente proporcionou direitos para muita gente, mas não conseguiu fazer isso para uma parte da população. Então, ele diz que vem acabar com esse Estado que não tem conseguido garantir esses direitos e isso, obviamente, encontra eco em quem não tem um trabalho formal, férias, 13º salário ou cobertura médica. Ele fala diretamente a entregadores de aplicativos que ficariam sem renda, caso sofressem algum acidente com suas motos, e a tantos outros para quem o risco de perder direitos é muito menos visível.

Há uma proliferação de discursos que, para além do conteúdo, oferecem soluções mágicas. Esse é um fenômeno que tem muitas faces e que na Argentina foi encarnado por Milei, mas que também o foi por Jair Bolsonaro no Brasil, por Donald Trump nos Estados Unidos e pelo partido Vox na Espanha. E esses países não vivem uma situação econômica parecida com a da Argentina.

O cotidiano hoje é mais difícil do que no fim do governo de Mauricio Macri, em 2019, quando vocês concluíram o livro?
Sim, são conjunturas muito diferentes, com uma pandemia no meio e os desacertos do governo [de Alberto Fernández,] que está terminando, inclusive no manejo da pandemia.

Caso o ministro Sergio Massa vença a eleição, um plano de estabilização feito por ele teria sucesso mesmo com a população acreditando tão pouco em sua moeda?
Ganhe quem ganhe, o futuro político do próximo presidente está atado à sua capacidade de reduzir a inflação de maneira sustentada, vai ser preciso mostrar bons resultados em um prazo relativamente curto. Já tivemos experiências de redução da inflação de maneira brusca e que não deram certo, não se sustentaram ao longo do tempo.

O desafio para o futuro governo será conseguir isso a um custo social e econômico aceitável. Se houver uma desvalorização gigantesca, com ou sem dolarização, será um dano social enorme, que já vivemos em 1989, 1990 e 1991. A experiência da paridade peso-dólar também teve custos sociais gigantescos, em termos de pobreza, desemprego e renda.

Mesmo com Massa, o peso pode acabar substituído por uma outra moeda?
Diversos economistas, sobretudo na América Latina, se dedicaram a estudar esse componente inercial da inflação. Em países com inflação mais elevada, como a Argentina de hoje ou diversos países da região nas décadas de 1970 e 1980, há essa preocupação em observar os elementos que incidem no aumento de preços, e a decisão de mudar o nome da moeda, como fez [o ex-presidente argentino] Raúl Alfonsin ao lançar o austral nos anos 80, e também como ocorreu no Brasil, tem algum sentido. Pode ajudar a desarmar boa parte desses automatismos da economia, mas apenas trocar de moeda seria como acreditar em magia, não é uma medida que funcionaria sozinha.

Com nosso histórico acidentado de luta contra a inflação, diversos planos econômicos e troca de moedas, a ideia de uma divisa semelhante ao euro para os países do Mercosul é algo impensável?
Brasil e Argentina têm muitas coisas em comum, mas também têm características muito diferentes (em território e tamanho da população e da economia), sem falar dos outros sócios do Mercosul. Pensar em uma moeda para o bloco, nos moldes do euro, envolve uma série de questões que hoje parecem distantes.

Hoje, me parece algo distante para os nossos países, por ser uma política que transcende governos. E não vejo quais seriam os atores políticos dispostos a bancar um projeto assim, considerando a volatilidade da região, onde o poder passa por mãos tão diferentes em um intervalo de quatro anos: de Jair Bolsonaro para Lula, no Brasil, e de Alberto Fernández para, talvez, Javier Milei, na Argentina.

Mas também precisamos lembrar que a criação da moeda da União Europeia foi um processo longo, de anos, que envolveu economias de características muito diferentes, como Portugal e Alemanha, e ainda assim foi possível encontrar um caminho.


RAIO-X | Mariana Luzzi, 51

É coautora de "El Dólar: Historia de una Moneda Argentina", pesquisadora do Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas) e professora na UNSAM (Universidad Nacional de San Martín). Estudou sociologia na UBA (Universidade de Buenos Aires) e é doutora na área pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris)

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