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Mulheres não são pessoas no capitalismo, apenas corpos, diz Silvia Federici

Feminista italiana lança 'Além da Pele' e debate trabalho físico feminino, da prostituição à barriga de aluguel

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São Paulo

A feminista Silvia Federici alcançou o status de intelectual pop há algum tempo. Sua obra, que bebe do marxismo para pregar que o trabalho doméstico e de cuidado realizado pelas mulheres é, sim, trabalho, virou slogan estampado até em pano de prato, na cativante frase "o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago".

O debate esquenta desde o primeiro lançamento da italiana no Brasil, "Calibã e a Bruxa", em 2017, pela editora Elefante. O trabalho invisível das mulheres foi tema da redação do Enem neste ano e volta e meia entra na conta de reformas previdenciárias e mudanças na legislação de licença parental.

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A filósofa Silvia Federici em São Paulo, em 2019 - Zanone Fraissat/Folhapress

Agora, volta materializado no corpo feminino em "Além da Pele", lançado neste mês pela mesma editora da estreia e dos outros dois livros que a autora publicou por aqui, "Ponto Zero da Revolução" e "Reencantando o Mundo" e Federici vai a Paraty para participar da programação paralela da Flip, a Flipei, comandada pelas editoras independentes.

Se a obra de Federici se esforçou em ressaltar, até então, o serviço doméstico e a relação do capitalismo com o patriarcado, o conjunto de conferências que compõem "Além da Pele" coloca o corpo no centro do debate de forma mais direta a partir de questões como a prostituição, a barriga de aluguel e as cirurgias plásticas.

"O feminismo politizou o corpo e entendeu que ele não é uma realidade biológica, é social e cultural", diz a autora em entrevista à Folha, aqui editada para melhor compreensão. "O corpo é estruturante das relações de poder."

No caminho, ela compra polêmicas ao tecer críticas à política identitária e ao gênero como performance, noção cunhada por Judith Butler e abraçada pela comunidade LGBT.

Como a sra. avalia a compreensão do gênero como uma identidade? O limite da politica identitária é o corpo. Podemos transformar nosso corpo, mas precisamos transformar todas as condições materiais que permitem a existência do corpo. Ser mulher é uma identidade importante. Implica uma experiência particular, uma relação específica com trabalho, uma forma própria de exploração diferente da dos homens, e requer uma forma de luta específica.

A sra. acredita que mulheres possam ser vistas como uma classe social? Não vejo as mulheres como uma classe.

A sra. critica a popularização da teoria do gênero como performance, de Judith Butler. A realidade é que a maioria das mulheres não tinha alternativa. Elas não tinham permissão para fazer certos trabalhos, ou ir à escola, ir à universidade por décadas. Mesmo depois da Revolução Francesa as mulheres não eram consideradas pessoas perante a sociedade, elas tinham um representante legal. O casamento era uma forma de garantir sobrevivência na sociedade. Não podemos falar sobre performance nesse contexto, o gênero era uma imposição. Claro que é possível se rebelar, mas a performance enfatiza demais o aspecto voluntário, tem um aspecto de escolha, você pode fazer ou não fazer.

Como funciona, hoje, essa rebelião? Mulheres estão organizadas pela demanda das trabalhadoras domésticas, elas estão à frente de campanhas pelo meio ambiente e pela luta de terras, acontece isso no Brasil. Hoje precisamos de organização internacional feminista e estamos começando a ver isso em torno do genocídio na Palestina. Precisamos de um feminismo que lute contra a guerra e contra o militarismo.

A geração de bebês deve ser politizada e usada pelas mulheres como protesto? Decidi não ter filhos, mas não acho que isso deve ser uma meta política. Seria mais um empobrecimento, pois ter filhos, para muitas mulheres, é fundamental. Não queremos lutar por uma situação em que só mulheres ricas possam se reproduzir. Muita culpa é colocada em cima das mulheres na África e América Latina como se elas fossem geradoras de pobreza porque têm muitos filhos, mas é a escassez de recursos que faz com que seja necessário ter muitos filhos. Se você vive em um estado sem seguridade, você precisa ter filhos. Precisamos lutar para não ter filhos se assim quisermos e para que tê-los não destrua nossas vidas.

Como a tecnologia entra nesse processo? A questão da barriga de aluguel é um exemplo. É visto como ato de altruísmo das mulheres que podem conceber para as que não podem, mas, adivinhe, envolve pessoas que precisam de dinheiro. Vejo isso como a criação de um mercado de bebês, mas isso não é culpa das mulheres que gestam. Feministas não devem apoiar a noção de que gerar uma criança para outros é a única forma de conseguir algum dinheiro. É uma prática colonial, como Angela Davis colocou.

Como a sra. enxerga a prostituição e a questão da descriminalização da profissão? Me chateia ver feministas que condenam a legalização. Claro que é uma abominação, toda forma de exploração é. A barriga de aluguel é, mas não culpo a mulher que gesta, que passa dificuldades financeiras. Pela mesma razão não posso condenar uma mulher que decide que quer ganhar dinheiro dessa forma.

Historicamente falando, o casamento é uma transação econômica. Claro, muitas mães sempre disseram às suas filhas que casem com quem vai sustentá-las. É moralismo ver a venda do corpo como a abominação mais violenta.

Existe uma dicotomia entre a forma como o corpo feminino é visto ao falarmos da prostituição, em que se considera uma violação de algo sagrado, e quando falamos do sexo por obrigação no casamento, que é esperado? Foi necessário todo o movimento feminista para estabelecer que existe estupro no casamento, porque até então acreditava-se que o homem tinha direito irrestrito ao corpo da mulher. No capitalismo, a celebração do corpo da mulher permite também que seja ele desvalorizado. Mulheres são vistas como corpos, boas para sexo, boas para ter filhos. Pessoas negras são vistas como corpos. É um sinal de inferioridade, como se o corpo fosse separado da mente.

A sra. disse que nos anos 1960 o orgasmo feminino e a liberação sexual feminina entraram na equação das expectativas do casamento. É mais uma forma de trabalho não pago das mulheres? Com certeza. Existia a pressão pelo orgasmo. E o sexo para as mulheres sempre foi doloroso. Por muito tempo não tínhamos a pílula, então não podíamos relaxar durante o sexo. Além disso, a sexualidade feminina sempre foi desvalorizada e degradada. Não há liberdade para uma mulher falar o que ela quer. Mulheres sempre temem parecer vadias, enquanto homens não. Existe uma divisão disciplinar entre as mulheres boas e as vadias.

Além da Pele

  • Preço R$ 65 (196 págs.)
  • Autoria Silvia Federici
  • Editora Elefante
  • Tradução Jamile Pinheiro Dias

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