Missão recupera 900 mil notas bancárias do norte de Gaza

Uma operação do Banco da Palestina conseguiu mover notas no valor de US$ 50 milhões para aliviar a escassez de dinheiro no sul

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The New York Times

Através dos escombros do norte de Gaza, sob a proteção de uma breve trégua entre Israel e o Hamas, um comboio de veículos na última terça-feira (5) realizou uma das missões mais incomuns da guerra: a recuperação de cerca de 180 milhões de shekels em dinheiro.

O estoque de notas, com peso próximo a uma tonelada e no valor de US$ 50 milhões (R$ 246,5 milhões), estava guardado em duas agências do Banco da Palestina situadas em algumas das partes mais devastadas do enclave sitiado, onde hoje quase nenhum prédio está intacto e nenhum caixa eletrônico funciona.

Soldados israelenses avançam em uma posição perto da fronteira de Gaza, em meio a contínuas batalhas entre Israel e o Hamas.
Soldados israelenses avançam em uma posição perto da fronteira de Gaza, em meio a contínuas batalhas entre Israel e o Hamas. - Jack Guez/AFP

Preocupados com a crescente escassez de dinheiro no sul de Gaza, para onde a maioria dos 2,3 milhões de habitantes do enclave fugiu e onde a maioria dos beneficiários da ajuda humanitária agora está baseada, autoridades do Banco da Palestina viram a trégua como uma chance de recuperar as notas de shekels que estavam retidas no norte —e ajudar a evitar o colapso da economia.

A operação de resgate, apelidada de "ConOps-Gaza", exigiu um planejamento extenso: apoio da ONU, guardas, autorização de Israel e segurança tão elaborada que uma pessoa envolvida com o plano pediu ao Financial Times para omitir alguns detalhes.

As cerca de 900 mil notas bancárias eram suficientes para encher um pequeno contêiner de transporte. "Foi certamente um comboio incomum. Surreal, mas necessário", disse outra pessoa envolvida na logística.

Missão cumprida: as notas agora estão disponíveis para circular no sul de Gaza, onde esforços igualmente tensos são feitos todos os dias para manter o fluxo de dinheiro diante dos intensos bombardeios de Israel.

Enquanto mísseis caíram sobre Gaza durante a maior parte dos últimos dois meses, funcionários de bancos têm dirigido carros particulares até agências fechadas, retirado dinheiro dos cofres e reabastecido caixas eletrônicos para mantê-los em funcionamento —embora com frequente interrupções.

"Fizemos isso em caixas eletrônicos e agências localizados em áreas relativamente seguras", disse um funcionário do Banco da Palestina, observando que apenas seis dispensadores de dinheiro do BoP estavam operando no sul e no meio de Gaza.

Às vezes, os funcionários têm até mesmo que mover dinheiro de forma clandestina entre agências e caixas eletrônicos, de acordo com uma pessoa familiarizada com as operações; os veículos de segurança básicos que os bancos costumam usar para mover notas usadas em tempos de paz já não são uma opção no sul de Gaza.

As medidas adotadas pelos bancos palestinos são uma tentativa de amenizar a crise avassaladora na economia dependente de dinheiro de Gaza, onde os residentes sitiados enfrentam preços exorbitantes, grave escassez de alimentos e a ameaça contínua de bombardeios. Com o secretário-geral da ONU alertando que a ordem pública em Gaza pode logo "entrar em colapso completo", manter os caixas eletrônicos funcionando se tornará ainda mais difícil.

Mesmo antes do conflito, a economia de Gaza era única: 81% da população era considerada pobre e dependia de ajuda internacional, segundo dados da ONU.

Aqueles que recebem apoio de fora de Gaza ou que têm seus salários depositados em contas bancárias —como funcionários públicos e famílias que recebem subsídios por mortes ou ferimentos em guerras com Israel— dependem das redes de caixas eletrônicos.

Os pagamentos da Autoridade Palestina, cujo financiamento foi reduzido por Israel, também têm sido irregulares. Ela foi forçada a cortar os pagamentos de salários para funcionários públicos, pagando apenas duas semanas de salário desde o início da guerra.

"Tenho pedido empréstimo de praticamente todos desde o início da guerra", disse Iyad Khaled, um funcionário público deslocado com 10 membros de sua família do norte de Gaza para a cidade de Khan Younis, no sul.

O pai de três filhos agora precisa cuidar de seus pais, além de sua irmã e seus filhos. "Não basta termos perdido nossas casas e tudo o que possuíamos?", disse ele. "Agora tenho que sobreviver com metade do meu salário, com todas as pessoas que preciso cuidar. Mal conseguimos sobreviver, as pessoas vão morrer de fome".

As notas bancárias estão em falta, os pagamentos eletrônicos são raros e a inflação está descontrolada. Produtos básicos como leite em pó, farinha, sal e fermento estão extremamente escassos e seus preços dispararam.

Não há leite fresco, os ovos triplicaram de preço, a farinha aumentou dez vezes e o preço de um pacote de queijo processado subiu de três para dez shekels antes de desaparecer completamente do mercado.

Durante a trégua, algumas agências bancárias no sul de Gaza reabriram "para oferecer serviços de emergência". A Autoridade Monetária Palestina, que regula os bancos, emitiu instruções para oferecer empréstimos aos trabalhadores no território cujos salários foram atrasados ou reduzidos.

Também pediu aos bancos que forneçam fundos de emergência às empresas e que reagendem as dívidas dos mutuários. Comerciantes que usam máquinas de ponto de venda foram autorizados a dar "dinheiro de volta" aos clientes que o solicitarem em seus cartões.

Os bancos também introduziram medidas, como estender a validade dos cartões bancários prestes a vencer. Mas o acesso ao dinheiro depende em última instância de eletricidade e internet; os caixas eletrônicos não funcionam durante os frequentes cortes de energia.

Om Saher Khalil, 52 anos, mãe de sete filhos deslocados do norte de Gaza para Rafah, no sul, disse que não recebeu nada da Autoridade Palestina desde o início da guerra.

"Eles não fornecem subsídios para nós", disse ela. "Nós vivemos com a ajuda que as pessoas oferecem. Estamos com frio, nunca comemos o suficiente e há bombardeios. Que vida é essa?".

Muitos dizem que, mesmo que sobrevivam à guerra, tudo o que os espera é um futuro sombrio de perdas e dificuldades.

Abu Udai Abu Sultan, um funcionário assalariado e pai de cinco filhos deslocado para a cidade de Deir al-Balah, disse que a casa da família foi destruída. "Ela valia $200.000 e agora foi completamente esmagada", disse ele.

Sultan fez um empréstimo que ele não precisa começar a pagar até depois da guerra, mas ainda está ansioso. "Se sobrevivermos à guerra, terei que pagá-lo, mas meu salário não será suficiente", disse ele. "Teremos que dormir na rua".

Om Mazen al-Sheikh, funcionária do setor privado, que também recebeu apenas metade do salário devido à economia destruída pela guerra, reclamou que a Autoridade Palestina não deveria oferecer empréstimos, mas ajudar as pessoas com doações. "A coisa mínima que um governo poderia fazer é nos oferecer comida. Estamos enfrentando uma catástrofe de guerra e estamos quase em uma situação de fome".

Ela disse que já havia pegado dinheiro emprestado e não tinha ideia de como o pagaria. "Meio salário não é suficiente nem mesmo para o básico", disse ela. "Deus queira que todos nós morramos, o que seria mais misericordioso do que esta vida".

Reportagem de Mai Khaled, Heba Saleh, James Shotter e Mehul Srivastava

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