'Se tivesse 25% do dinheiro que acumulei, já seria o bastante', diz fundador da Arezzo

Em biografia, Anderson Birman relata decepção com fortuna, fracassos, vida com Parkinson e crença nos espíritos

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São Paulo

O primeiro trabalho do mineiro Anderson Birman foi aos sete anos, como vendedor de ovos. Mas não era uma venda trivial: "Os ovos quentinhos da vovó" eram o seu argumento de venda, anunciado em voz alta pelas ruas de Manhuaçu, na zona da mata mineira. Numa idade em que as crianças estão mais preocupadas em brincar do que em fazer contas, Birman sabia que poderia conquistar mais clientes dizendo que os ovos eram "da vovó", porque "soava mais afetivo".

O que lhe movia, na verdade, era o desejo de ficar rico. E ficou: criou uma empresa que hoje fatura mais de R$ 5 bilhões ao ano, é uma das maiores fabricantes de calçados, bolsas e acessórios da América Latina, com mais de mil lojas, entre próprias e franquias, no Brasil e no exterior. O grupo Arezzo&Co. é dono das marcas de calçados Arezzo, Schutz, Alexandre Birman, Anacapri, Fiever, Alme, Vans, My Shoes, Vicenza e Paris Texas, e também enveredou pelo mundo da moda, com Reserva e Carol Bassi.

Mas depois de ter ficado rico, Birman percebeu que não precisava de tudo aquilo. "Se eu tivesse 25% do dinheiro que acumulei, já seria o bastante", diz o empresário no livro "A cada passo –Anderson Birman" (editora Citadel). Essa é uma das aparentes contradições do empresário expostas na biografia de 288 páginas, em depoimento à jornalista Ariane Abdallah.

Homem branco, grisalho, com camisa preta
Anderson Birman, 69, fundador da Arezzo - Divulgação

Além de certa decepção com o lado B da riqueza –"O dinheiro toma lugar nas conversas, e você passa a se perguntar o quanto as pessoas estão com você por causa dele ou porque realmente querem estar"–, Birman conta sobre os fracassos envolvidos na criação da Arezzo: o gerente que fingiu entender da fabricação de sapatos, mas não sabia nada; o sapato de salto de madeira que soltava a palmilha após dois minutos de uso; o representante comercial que mentiu sobre uma grande encomenda, que no final precisou ser negociada a preço de custo.

Ao mesmo tempo, mostra o quanto a empresa que nasceu em 1972 em uma garagem ao lado da casa da família, em Belo Horizonte, quando Birman tinha apenas 18 anos, cresceu a ponto de fazer um IPO (oferta pública inicial) de R$ 550 milhões 39 anos depois. Hoje, o valor de mercado da Arezzo&Co. gira em torno de R$ 7 bilhões.

O homem que nasceu judeu e se tornou espírita, aderindo às vertentes kardecista e umbandista, inclusive como médium; o quase engenheiro que se tornou sapateiro autodidata, ensinando o ofício ao filho mais velho; o empresário que chegou a desmanchar o call center da companhia, mas defende que atender o cliente é o principal objetivo de qualquer empresa. As contradições de Anderson Birman estão no livro, que também abre espaço para a autorreflexão do executivo, que decidiu se afastar da presidência da empresa em 2013, e do conselho de administração em 2017.

"Não me encaixo mais na forma de gestão de uma empresa dos dias de hoje por comportamentos que hoje reconheço não serem adequados. Falo muito palavrão, sou direto na comunicação e não uso terminologias ou técnicas corporativas que hoje estão na moda", diz ele na obra, relatando que o filho mais velho e seu sucessor, Alexandre Birman, lhe chamou a atenção após ele perguntar para uma funcionária se ela pretendia ter filhos. "Minha intenção era apenas saber seus planos, já que me interesso pelas pessoas que fazem parte da empresa", afirmou o empresário, que diz sempre ter baseado contratações ou decisões de negócios na intuição.

A honestidade em falar dos pontos fracos vale a leitura de "A cada passo" –especialmente quando se sabe que a maior parte das biografias de empresários estão focadas em enaltecer o próprio ego. Birman não deixa de relatar seus feitos à frente da Arezzo, mas se mostra aberto a compartilhar fracassos e, principalmente, fraquezas.

É assim que o leitor descobre que, há cerca de dois anos, o empresário, hoje com 69, foi diagnosticado com Parkinson. "Desde então [...] aquilo que mais tem drenado a minha energia é a frustração. Sinto-me impotente diante dessa doença que, aos poucos, me distancia de quem eu um dia fui. Sempre tive facilidade para falar, mas, de repente, essa se tornou uma das habilidades mais difíceis para mim. A sensação é a de que minha mente 'dá branco', de que faltam as palavras, especialmente quando fico nervoso. Tento ser positivo e cultivar a esperança de que, apesar das limitações, posso viver uma vida com qualidade."

'Parkinson faz parte da vida e me faz olhar as coisas de um jeito diferente'

A entrevista à Folha sobre o lançamento do livro, que ocorreu mês passado, seria concedida pessoalmente. Mas o avanço da doença, que gera distúrbios da fala, fez com que as respostas viessem por escrito, como seguem:

Por que uma biografia? Porque depois de ter registrado minhas memórias por quatro anos sem intenção de publicar, fiquei motivado a compartilhá-las com o mundo quando entendi que o valor que me cabe das vendas poderia ser dedicado a uma causa importante para mim [as vendas serão destinadas à Casa Transitória Fabiano de Cristo, em São Paulo]. Comecei o registro de lembranças e reflexões para não deixar a história se perder no tempo e para os meus filhos e netos terem esse material.

O que existe de especial no ofício de sapateiro? É um trabalho muito complexo, cheio de detalhes, para chegar a um produto final que seja belo, seguro e confortável. Para mim, se tornou especial porque foi aquele que pude aprender e passar para os meus filhos. Foi o que permitiu construir a empresa e tudo o que veio com ela.

Faz 10 anos que o senhor deixou a Arezzo. Por que saiu tão cedo? Porque entendi que meu filho Alexandre, que cresceu dentro do negócio, era a pessoa certa para tocar a empresa a partir de certo ponto. Trabalhamos o tema da sucessão antecipadamente, com apoio de consultores, então entendíamos a importância de o fundador manter sua mentalidade como parte da empresa, mas sem se apegar à gestão. O fato de ser mais jovem, de ter uma visão inovadora fez com que o Alexandre se tornasse um excelente gestor. A companhia mudou, o contexto se tornou outro, muito diferente daquele do início.

O quanto estar no dia a dia da empresa lhe faz falta? No início, fazia bastante falta. Eu gostava da intensidade do trabalho, do ritmo acelerado, da dinâmica, de tomar decisões. Com o tempo, fui criando novos hábitos, uma nova rotina, o que também me faz bem. Tenho sessões regulares com o professor Bologna [José Ernesto Bolonha, psicólogo organizacional], faço aula de inglês e pratico atividade física. Costumo dedicar as manhãs aos meus cuidados pessoais, e à tarde, vou para o escritório.

O senhor tem cinco filhos, de dois casamentos. Como foi decidir o processo de sucessão? Foi natural porque o Alexandre, que é também o primogênito, sempre participou da empresa, ele foi conquistando seu espaço profissional com o próprio trabalho.

Por que dividir os seus bens, entre os filhos, em vida? Para ser feito de uma maneira saudável, com a participação de todos os envolvidos nas discussões. O legado é dos meus filhos, são eles que vão continuar o que comecei.

O mercado brasileiro foi abalado pelo escândalo da Americanas, que suscitou diversas discussões sobre a governança das empresas. O quanto o senhor influenciou neste tipo de questão, para garantir a sustentabilidade da Arezzo? Sempre valorizei uma boa governança e busquei o apoio de especialistas para isso. Mesmo antes de abrirmos capital, eu já tinha a preocupação em manter as contas da empresa organizadas de maneira clara e simples. Com o IPO, essa exigência se intensificou, o que eu achei excelente. Hoje, meu papel é muito mais de orientação. Não participo da gestão diretamente, mas sobre as questões mais relevantes, o Alexandre me procura e contribuo com a minha experiência e visão.

Como foi descobrir o Parkison? O quanto isso o abalou? Foi duro, porque eu sempre fui muito ativo, comunicativo, independente. Mas entendo que faz parte da vida e está me trazendo a oportunidade de olhar para as coisas de um jeito diferente e a ser grato por tudo o que conquistei até aqui.

Quais foram os melhores e os piores passos de Anderson Birman até agora? Os melhores foram criar meus filhos e minha empresa, que hoje andam juntos. O pior talvez tenha sido focar em acumular tanto no mundo material, sem saber que, com o tempo, isso não me traria mais tanta satisfação.

Seu primeiro negócio foi vendendo ovos, aos 7 anos. O que o senhor acha que o garoto Anderson diria hoje ao senhor? Confie na sua intuição e realize tudo o que quiser e se sentir capaz. E não esqueça de cuidar da sua saúde, do corpo e da mente, e das relações com as pessoas que você ama.

RAIO-X - ANDERSON BIRMAN, 69

Fundou, em 1972, uma das maiores fabricantes de calçados, bolsas e acessórios da América Latina, a Arezzo. São mais de mil lojas, entre próprias e franquias, no Brasil e no exterior. O grupo Arezzo&Co. é dono das marcas de calçados Arezzo, Schutz, Alexandre Birman, Anacapri, Fiever, Alme, Vans, My Shoes, Vicenza e Paris Texas, e também enveredou pelo mundo da moda, com Reserva e Carol Bassi.

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