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Como a crise da Boeing tem perturbado o equilíbrio de poder na aviação

Se fabricante continuar perdendo mercado para Airbus, poderá haver consequências para cadeias de suprimentos e clientes de companhias aéreas

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Sylvia Pfeifer Philip Georgiadis Steff Chavez
Londres e Chicago | Financial Times

Construir o maior avião de passageiros do mundo, o Airbus A380, exigiu uma fábrica de porte à altura. O avião de dois andares, porém, foi um fracasso comercial, e o centro Jean-Luc Lagardère, de 50 hectares, na cidade francesa de Toulouse, produziu o último modelo em 2021.

Três anos depois, uma instalação com um hangar central capaz de abrigar 500 quadras de tênis sob um teto de 46 metros de altura voltou à vida com um propósito renovado: ajudar a fabricante europeia de aviões a cumprir uma fila de espera de 7.197 pedidos para sua série de jatos menores de corredor único, a A320, que é a mais vendida. Até 2026, Lagardère será uma das dez linhas finais de montagem trabalhando a um ritmo de cerca de 75 aviões por mês.

Aeronave de passageiros da Emirates, um A380 da Airbus, decola do aeroporto de Toulouse-Blagnac, na França, com destino a Dubai. Ao fundo, o sol se põe
Aeronave de passageiros da Emirates, um A380 da Airbus, decola do aeroporto de Toulouse-Blagnac, na França, com destino a Dubai - Charly Triballeau/AFP

Enquanto as linhas de produção da Airbus estão a todo vapor, sua arquirrival Boeing está envolvida em uma crise. A explosão dramática de uma tampa de porta na fuselagem, o corpo principal do avião, durante um voo da Alaska Airlines em 5 de janeiro, lançou uma sombra sobre a série 737 Max da Boeing —um concorrente direto da A320 da Airbus e a maior fonte de receita da empresa americana em seu negócio de aeronaves comerciais.

Foi o incidente mais recente de uma série de contratempos para o grupo americano. Em 2018 e 2019, o 737 Max 8 esteve envolvido em dois acidentes que mataram, no total, 346 pessoas. Desta vez, é o Max 9, uma versão mais longa do avião, que está em foco. Os reguladores dos EUA, que haviam proibido alguns Max 9 de voar, liberaram-os para operar novamente na semana passada. Mas as investigações continuam sobre os processos de fabricação na Boeing e em seu fornecedor Spirit AeroSystems, que constrói as fuselagens do Max.

As promessas de altos executivos, incluindo o CEO Dave Calhoun, de melhorar a qualidade e os processos de engenharia ficaram aquém. A decisão da FAA (Administração Federal de Aviação, na sigla em inglês) de congelar os planos do grupo de aumentar a produção de sua frota Max afetará as metas financeiras da empresa.

A Boeing, que divulgará os resultados do quarto trimestre em 31 de janeiro, recorreu a um almirante aposentado da Marinha para revisar seus sistemas de gestão de qualidade e está sob pressão para oferecer respostas aos investidores.

Seus clientes também estão furiosos: a Alaska Airlines e a United Airlines, os maiores compradores do Max 9, expressaram sua raiva separadamente na semana passada, ao afirmar que a empresa precisa resolver urgentemente seus problemas de fabricação.

Stan Deal, um dos executivos mais importantes da Boeing e presidente-executivo da divisão de aeronaves comerciais, pediu desculpas. "Deixamos nossos clientes de companhias aéreas na mão e lamentamos profundamente a perda significativa para essas empresas, seus funcionários e seus passageiros."

Em jogo, não está apenas a posição da Boeing como líder na aviação. Os erros da empresa levaram alguns especialistas do setor a questionar se houve uma mudança decisiva de poder em direção à Airbus no duopólio que governa a indústria aeroespacial.

Praticamente todos os grandes aviões de passageiros no mundo ocidental são fabricados pela Airbus ou pela Boeing. Sua rivalidade transatlântica de cinco décadas tem sido a base do crescimento explosivo no número de passageiros e levou a inovações que reduziram o custo de voar e tornaram as viagens de massa uma realidade.

O grupo europeu tem sido o maior fabricante de aviões do mundo em termos de entregas nos últimos cinco anos e agora detém uma participação de mercado de 62% no lucrativo segmento de corredor único do mercado comercial, de acordo com a consultoria de aviação Cirium.

Mas executivos do setor dizem que uma Boeing forte é vital para a saúde do setor. As duas fabricantes de aviões vivem competição feroz por pedidos, com as bienais feiras aéreas em Paris e Farnborough, no Reino Unido, famosas por anúncios de pedidos milionários.

"É absolutamente crucial que tenhamos uma Boeing forte e que tenhamos uma Airbus forte e que as duas pelo menos concorram entre si, não apenas por pedidos mas também em termos de desenvolvimentos tecnológicos", diz Michael O'Leary, CEO da Ryanair, um dos maiores clientes da Boeing.

Isso depende de a Boeing reverter a situação. Se não conseguir, haverá consequências para a cadeia de suprimentos aeroespaciais e para os clientes das companhias aéreas.

Novas empresas tentaram entrar na indústria, mas com sucesso misto. A Comac, campeã aeroespacial apoiada pelo estado chinês, cujo primeiro voo comercial do C919 de corredor único decolou no ano passado, começou a surgir como a primeira ameaça real em décadas.

"Houve uma mudança de poder: a Airbus está vendendo o dobro da Boeing no mercado de corredor único", diz o analista do Bank of America Ron Epstein.

Fundada há mais de um século em Seattle, Washington, a Boeing não é apenas uma empresa mas um símbolo do seu país de origem: um pilar da economia, tanto como contratante de defesa —ela constrói o Air Force One, o avião do presidente dos EUA— quanto na aviação civil.

Dennis Tajer, do sindicato de pilotos da American Airlines, chama a Boeing de "símbolo nacional" que deve ser mantido em alto padrão. "Você não pensa em uma empresa icônica como a Boeing, que realmente é uma espécie de bandeira do nosso país, falhando consistentemente assim", diz ele.

A Boeing emergiu como a principal empresa no setor de aviação civil na década de 1960, depois que um grande número de concorrentes —muitos dos quais prosperaram durante a Segunda Guerra Mundial— ficou para trás ou foi adquirido. No mesmo período, a promissora indústria de aviões do Reino Unido cometeu vários erros estratégicos, incluindo investir dinheiro com a França no Concorde, um avião de passageiros supersônico que nunca foi um sucesso de vendas.

Em vez de buscar alta velocidade, a Boeing fez uma aposta arriscada no jato gigante 747, uma aeronave de alta capacidade amplamente creditada por tornar as viagens aéreas mais acessíveis. Seus concorrentes americanos não conseguiram acompanhar. A Lockheed, como era conhecida antes de sua fusão com a Martin Marietta, saiu do mercado comercial na década de 1980, e a enfraquecida McDonnell Douglas se fundiu com a Boeing em 1997.

Então, um verdadeiro concorrente surgiu na forma da Airbus, uma coalizão de empresas aeroespaciais europeias formada pelos governos em 1967, que se tornou uma única entidade comercial apenas em 2001.

A empresa começou com um único modelo, o A300 de tamanho médio, mas passou a desenvolver uma série de aviões para desafiar cada um na linha da Boeing. Em 1999, segundo a Cirium, a Airbus tinha uma participação de 50% no mercado de corredor único, em grande parte graças ao popular A320, que fez seu primeiro voo em 1987.

Desde então, a empresa adicionou novas variantes à família, incluindo o A320neo e o A321neo, que possuem motores mais econômicos, uma característica importante para as companhias aéreas que desejam economizar dinheiro com combustível e reduzir suas emissões de carbono. Foi a chegada do A320neo —e quase perder um cliente exclusivo na American Airlines— que levou a Boeing a lançar o 737 Max, em 2011.

A Boeing teve que agir rapidamente para enfrentar a ameaça. Ela abandonou os planos de desenvolver um avião completamente novo e, em vez disso, ofereceu à American uma versão renovada do seu best-seller 737: o Max. Não apenas o Max estaria pronto mais cedo mas, assim como o A320neo, ele teria motores eficientes em termos de combustível para atender à demanda por economia.

Essa decisão se mostraria fatal. A crise do Max 8 levou à paralisação de toda a frota por 20 meses a partir de março de 2019. Aliado à interrupção causada pela pandemia, que praticamente paralisou as viagens aéreas internacionais, a Boeing sofreu um golpe pesado, permitindo que a Airbus dominasse o mercado de corredor único.

A Boeing ainda lidera com suas aeronaves de fuselagem larga. A empresa americana entregou 132 dos maiores aviões de corredor duplo, incluindo o 787, em 2023, em comparação com 96 da Airbus, que incluíram 64 A350s. Ela também recebeu mais pedidos de aeronaves de fuselagem larga do que sua concorrente.

Mas a popularidade da oferta de corredor único da Airbus significa que o grupo europeu ainda tem mais pedidos do que sua contraparte americana, com um backlog de 8.598 para 5.626, respectivamente. Um novo cliente que queira encomendar A320s teria que esperar até o final desta década para a entrega.

"A participação de mercado mudou drasticamente para a Airbus com o lançamento do A320neo. Isso não vai mudar", diz Aengus Kelly, CEO da AerCap, a maior empresa de locação de aeronaves do mundo, acrescentando que a Boeing deve se concentrar na próxima geração de aviões e construir um "concorrente sério" para rivalizar com o que quer que a Airbus possa oferecer.

Os problemas da Boeing reacenderam questões sobre a possibilidade de surgirem concorrentes para desafiar o duopólio de longa data entre o fabricante americano e a Airbus.

Um potencial disruptor há muito tempo cogitado é a chiensa Comac. Pequim não esconde sua ambição de conquistar uma fatia do mercado global de aviação comercial e investiu cerca de US$ 72 bilhões (R$ 354 bilhões) para ajudar a desenvolver o jato de passageiros de corredor único C919 da Comac.

Quando o C919 fez seu voo inaugural, em 2023, marcou um avanço nas aspirações da China em termos de autossuficiência tecnológica. Mas a aeronave depende muito de fornecedores ocidentais para componentes críticos, incluindo sistemas de comunicação e navegação, motores, trens de pouso, rodas e freios.

Alguns executivos do setor, como O'Leary, da Ryanair, recebem com satisfação uma maior concorrência. "O mundo precisa de três fabricantes fortes", diz ele. "Gostaríamos de ver a Comac surgir como uma alternativa."

Mas a aeronave da Comac não está isenta de problemas, argumenta ele, chamando-a de "um A320 glorificado". O'Leary acrescenta: "Quanto mais aeronaves a Comac produz, mais atrai os mesmos fornecedores de motores, os mesmos fornecedores de aviação. É um A320 em tudo, exceto no nome".

Apesar do ceticismo generalizado de que a Comac possa ser um concorrente viável em breve, o desenvolvimento tecnológico da China —incluindo avanços em setores como chips de computador e veículos elétricos— tem causado certa preocupação no Ocidente. Progressos incrementais também foram feitos em alternativas domésticas para os fornecedores estrangeiros do C919, como ligas de alumínio-lítio, aços de ultra-alta resistência, fibras de carbono e alguns componentes de aviônica (eletrônica de aviação).

"A domesticação da produção de aeronaves [na China] acontecerá mais rápido do que todos pensam", diz Fu Shan, professor de automação na Universidade Jiao Tong de Xangai, cuja equipe trabalhou nos testes de conformidade do C919.

Enquanto isso, a Comac é limitada por dois fatores, diz David Yu, especialista da indústria da aviação que leciona na Universidade de Nova York em Xangai. O primeiro é o ritmo lento de aumento na produção e o segundo é a necessidade de aprovações regulatórias estrangeiras para entrar em novos mercados.

"O problema é o momento. Você está olhando para menos de cinco [novas aeronaves] por mês —esses números são muito baixos", diz ele. "[A Comac] também não é certificada [fora da China], as campanhas que eles gostariam de fazer nos EUA, Europa ou outras partes do mundo ainda têm esses obstáculos regulatórios."

Kelly, da AerCap, destaca os enormes desafios tecnológicos envolvidos na construção de aeronaves e motores. Ele prevê que a Comac levará "mais 20 a 30 anos para igualar o que a Boeing e a Airbus fazem atualmente".

Até lá, a China continuará sendo um grande mercado tanto para a Airbus quanto para a Boeing. A fabricante americana de aviões entregou na semana passada seu primeiro 737 Max para uma companhia aérea chinesa desde que a frota foi suspensa após os acidentes do Max 8, um impulso oportuno para a empresa.

Mas existem outros concorrentes em potencial. A brasileira Embraer, por exemplo, poderia ser incentivada a avançar ainda mais no mercado aeroespacial civil. O grupo aeroespacial e de defesa, que explorou uma parceria com a Boeing há quatro anos, é o principal produtor de jatos regionais, que normalmente têm até 120 assentos. Seu modelo mais recente e maior, o 195-E2, pode transportar até 132 passageiros.

"Eles fabricam aviões realmente bons", diz Epstein, do Bank of America. Embora a Embraer não tenha expressado o desejo de competir com a Airbus ou a Boeing, isso poderia mudar, acrescenta Epstein, "se as companhias aéreas vierem até você dizendo que quem está no mercado não está cumprindo o esperado".

Outros na indústria dizem que a Embraer será cautelosa ao enfrentar os dois gigantes da aviação. A Bombardier, antiga campeã industrial do Canadá, quase faliu ao tentar fazer exatamente isso com sua série C, uma oferta de corredor único de pequeno porte. A Bombardier acabou se associando à Airbus no modelo em 2017 antes de vender para o gigante europeu e sair do setor comercial em 2020 para se concentrar em jatos particulares.

Todos esses sinais sugerem que uma competição significativa para os dois principais jogadores ainda está distante.

"O duopólio está funcionando", diz Nick Cunningham, da Agency Partners, uma consultoria em Londres. "Ainda não há concorrência que valha a pena mencionar, embora o Comac C919 gradualmente substituirá o Max 8 e o A320neo na China."

Enquanto alguns críticos argumentam que o duopólio corre o risco de frear a inovação no setor, outros acreditam que o aumento do custo de novas tecnologias em uma indústria notoriamente cara é o obstáculo maior.

Segundo o colega de Cunningham, Sash Tusa, antigamente levava cerca de sete anos para desenvolver uma nova aeronave, mas agora leva uma década ou mais. As variantes dos modelos levavam de quatro a cinco anos, e agora levam cerca de sete anos. Tudo isso aumenta o custo de desenvolvimento de novas aeronaves.

"Em parte, isso é uma questão simples de 'tempo é dinheiro', e os controles regulatórios mais rigorosos estendem todo o processo de desenvolvimento", diz Tusa, observando que os padrões de segurança são mais exigentes. Mas mesmo pequenas melhorias no desempenho custam mais hoje em dia, à medida que a tecnologia existente de aeronaves civis se aproxima de seus limites, acrescenta ele.

Vários observadores de longo prazo da Boeing acreditam que a única maneira de a empresa recuperar uma participação significativa no mercado será lançando uma nova aeronave de corredor único. A empresa afirmou que não planeja desenvolver um novo modelo até meados da década de 2030, pois acredita que os ganhos de eficiência de combustível ainda não estão disponíveis para justificar um novo desenvolvimento.

"O que eu acho que [as companhias aéreas] realmente querem é que a Boeing volte à vida e ofereça a eles novos produtos", diz Richard Aboulafia, da Aerodynamic Advisory.

Haveria riscos: a Boeing, que ainda tem uma dívida significativa, seria capaz de financiar tal desenvolvimento; e o que ela faria em relação às aeronaves Max encomendadas por companhias aéreas cujas entregas se estendem até a década de 2030?

"Eles são capazes de construir um avião agora mesmo que possa competir com o A321neo. Isso custaria para eles, mas isso é sobre o futuro de sua empresa e da indústria aeroespacial americana", diz um observador de longo prazo.

"A Boeing tem muitos riscos", diz Bruce McClelland, analista sênior contribuinte da consultoria aeroespacial Teal Group. "Seu balanço está um pouco pesado em dívidas", acrescenta ele, observando que, embora um resgate do governo dos EUA possa ser remoto, não é impensável.

Por enquanto, a Boeing pode contar com o fato de que seus clientes precisam de suas aeronaves. "Para onde eles vão? A Airbus está com todas as vendas fechadas até 2030. A Boeing tem disponibilidade e [as companhias aéreas] querem crescer", acrescenta McClelland. "Enquanto essa dinâmica durar, a Boeing tem um pouco mais de espaço para perdão."

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