Investimento no Brasil mal cobre desgaste de máquinas e infraestrutura há quase uma década

Aportes em equipamentos também passaram a ser insuficientes para elevar a produtividade do trabalhador

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Brasília

O Brasil vive uma década perdida de investimentos, com dificuldades para elevar o estoque de capital da economia, essencial para iniciar um novo ciclo de desenvolvimento. O investimento mal cobre as perdas com a depreciação, como é chamado o desgaste de máquinas, equipamentos e da infraestrutura ao longo de seu uso.

O cenário aparece em dados atualizados do Sistema de Contas Nacionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) consolidados no Indicador Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Vista dos pilares da Ponte Pirituba - Lapa, às margens do rio Tietê, na capital paulistas, cujas obras estão paradas desde 2020; queda no investimento público acompanha retração do estoque de capital - 28-07-23 - Eduardo Knapp/Folhapress

A atualização mostra que depois de uma recuperação em 2021, o investimento líquido, aquele que já desconta a perda da depreciação, voltou a ser negativo. Houve queda em 2022, em relação ao ano anterior, e retratação até fevereiro de 2023, na comparação mensal. Ou seja, o investimento no período não foi suficiente para reunir um estoque de capital físico adequado.

Esse tipo de capital é o conjunto de recursos necessários para impulsionar a capacidade produtiva do país. Inclui, por exemplo, o maquinário das fábricas, a rede de saneamento, os galpões das redes de varejo, os prédios de escritório, o sistema de telecom, rodovias com seus elevados e suas pontes.

Assim, em uma analogia com um maratonista, quando a economia tem estoque de capital físico negativo equivale a dizer que está perdendo musculatura.

Em março, o investimento passou a cobrir a depreciação e a ficar positivo. No entanto, arrefeceu no segundo semestre. Em setembro, o investimento líquido registrou alta de apenas 0,2% em relação ao mesmo mês do ano anterior.

Os números foram atualizados às vésperas do Ano-Novo, aprimorando a leitura sobre os diferentes setores até 2021 e a avaliação do quadro geral até setembro do ano passado.

Análises preliminares já constam de nota técnica publicada no Carta Conjuntura do Ipea, assinada pelos economistas José Ronaldo de Souza Júnior e Felipe Moraes Cornelio, da Diretoria de Estudos e Políticas Macroeconômicas.

"Não é fácil estimar estoque de capital porque os elementos são muitos e variados: caminhão, fábrica de doces e até touro reprodutor são ativos do estoque de capital da economia, com diferentes taxas de depreciação, e a estimativa do Ipea é a melhor disponível", afirma Bráulio Borges, economista-sênior da área de Macroeconomia da LCA e pesquisador-associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

Borges já fez análises com os dados atualizados.

Para refinar a leitura, preferiu excluir de suas contas as distorções que ocorreram na contabilização das plataformas de petróleo ao longo da última década.

Borges lembra que, de 2013 a 2017, por causa dos benefícios do Repetro, um regime de tributação, plataformas que operavam no Brasil foram registradas como exportação, levando os dados do IBGE (base do Ipea) a subestimar o investimento nacional.

As regras do Repetro foram alteradas em 2018, e tornou-se vantagem internalizar as mesmas plataformas, gerando o efeito contábil inverso —a superestimação em R$ 150 bilhões de investimentos antigos como se fossem novos até 2022.

Depois de revisar esses efeitos, ele traçou duas séries. Uma considera o estoque total do capital físico, a outra exclui a construção residencial, com a proposta de dar uma visão mais refinada da capacidade produtiva.

Apesar de a construção residencial mobilizar considerável volume de insumos e número de trabalhadores durante a obra e parte das moradias depois ser alugada, o seu efeito dominó de ganhos para a produção de bens e serviços de fato é pequeno.

"Entre 1995 e 2014, o estoque de capital físico no Brasil cresceu em média 2,5% ao ano", afirma Borges.

"No entanto, de 2015 para cá está zerado e chega a cair 3,5% quando excluímos a construção residencial —ou seja, na melhor das hipóteses, o estoque de capital físico total da economia anda de lado."

Borges também calculou o efeito per capita desses resultados, considerando a população de 18 a 65 anos, em idade de trabalhar. Na série com todos os setores houve uma queda de 7% no estoque de capital per capita. Excluindo o efeito das residências, a retração vai a 10%.

"Ao fazer essa relação, é possível ver se o país está melhorando a estrutura física para os trabalhadores, e, pelo que identificamos, não está ", diz.

"O estoque de capital físico por trabalhador vem encolhendo, e encolhendo bastante, logo, fica difícil imaginar que vamos conseguir aumentar a produtividade do trabalho."

Souza Júnior, do Ipea, lembra que a recuperação dos investimentos e do estoque de capital a partir da recessão tem sido lenta, em parte porque foi muito profunda e com novos reveses nos anos seguintes.

"Foi uma queda tão acentuada que, pela primeira vez na história, os investimentos líquidos ficaram negativos —ou seja, houve queda de estoque de capital, que era algo inédito na nossa série que começa em 1947", afirma.

Apenas em 2019 o Brasil voltou a registrar investimento líquido positivo, mas veio a pandemia e retornou ao terreno negativo em 2020.

A atualização dos dados mostra que a recuperação em 2021 foi forte, apesar de ocorrer sobre uma base ruim.

Naquele ano, o investimento líquido totalizou R$ 70,5 bilhões, propiciando um avanço de 0,7% no estoque total de capital na economia. Um investimento positivo é sempre importante, mas o valor é pequeno para o porte de um país como o Brasil e distante do pico desses aportes, ocorrido em 2011, quando o investimento líquido encostou em R$ 310 bilhões.

"A gente vem tendo essa oscilação, com um crescimento fraco desse estoque de capital, com um investimento abaixo do que a gente precisa para aumentar a nossa capacidade instalada. Isso fica bastante claro nos números", explica Souza.

Os dados desagregados por setores em 2021 mostram que o segmento de máquinas e equipamentos se mantém como o mais combalido. Numa crise particular, muito associada à da indústria, os investimentos não param de recuar. O estoque de capital encolheu -0,68% naquele ano depois de retroceder 1,62% em 2020 e ficar zerado em 2019.

No extremo oposto, está o segmento chamado de "outros", que inclui uma série de atividades associadas ao agronegócio, como laranja, café e outras culturas perenes, além de óleo e gás. O estoque de capital teve a expansão mais expressiva: 4,47% em 2021.

Não existe consenso entre os especialistas sobre o que leva o Brasil a protelar investimentos produtivos.

Coordenador do Núcleo de Contas Nacionais do FGV Ibre, o economista Claudio Considera acompanha a retração dos investimentos líquidos e do estoque de capital e atribui o fenômeno à falta de confiança em relação ao futuro.

"A economia tem acumulado menos capital ano a ano, reduzindo o potencial da produção, e, na minha avaliação, isso vem da falta de confiança do empresariado para investir diante de várias incertezas", afirma.

Considera atribui a oscilação em 2023 à demora na tramitação da reforma tributária, que pode afetar 2024.

"Agora, ela saiu, e foi um passo institucional importante, mas será preciso regulamentar, e os empresários ainda têm essa incerteza sobre quanto do lucro vai ser tributado."

Em retrospecto, Souza Júnior lembra que a recessão foi acompanhada de aumento no endividamento e queda de rentabilidade das empresas, o que inibe investimento. Mas destaca que os resultados de 2021 são uma sinalização de que as reformas e o quadro fiscal mais robusto podem contribuir para elevar os investimentos.

Ele usa como exemplo o resultado da infraestrutura, cujo estoque de capital teve ala de 0,98%. "Parece haver um fôlego nos investimentos de infraestrutura", afirma Souza Júnior.

"Houve recuperação mesmo em 2020, no período mais intenso da Covid-19, e continuou crescendo em 2021. A gente ainda não tem os números de 2022, mas, até onde a gente vê, está seguindo a trajetória positiva, respondendo, na minha avaliação, ao cenário de reformas e estímulos a investimentos privados."

Na mesma linha, Samuel Pessôa, sócio-diretor do Julius Baer Family Office e colunista da Folha, defende que avançar nas reformas e estabilizar as contas públicas vão sedimentar a confiança empresarial e que a demora na recuperação dos investimentos estaria associada à ressaca gerada pelos excessos de investimento público nos anos anteriores à crise.

"A gente viveu um surto de investimentos liderados pelo Estado de 2007 a 2014, ele foi mal feito e maturou mal, porque o Estado brasileiro não sabe liderar investimento —é mal desenhado, leva a desperdício e até a corrupção", diz.

"Esse surto levou a uma sobreacumulação de capital, com baixa produtividade, gerando a crise de 2014 a 2016, elevando o endividamento e reduzindo a rentabilidade das empresas. A gente ainda está limpando essa coisa, pagando o preço do passado."

Borges tem avaliação diferente. A paradeira no estoque de capital ao longo de uma década, ao contrário, colocaria em xeque a ideia de que reformas e incentivos ao setor privado são suficientes para promover o crescimento econômico.

"Trabalhos recentes, super-robustos, mostram que investimento público e privado são complementares, não substitutos", afirma. "Não estou dizendo que seja a única explicação, mas chama a atenção o fato de o investimento líquido ter ficado negativo várias vezes nos anos no momento em que o investimento público teve forte retração."

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