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Nestlé vendeu águas minerais Perrier e Vittel filtradas na França

Legislação francesa restringe tratamento em águas que são vendidas como minerais ou de nascente

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Uma investigação realizada por veículos de comunicação franceses revelou que empresas do setor agroalimentar purificaram águas que vendiam como minerais, com a conivência do governo. O grupo Nestlé reconheceu na segunda-feira (29) a veracidade das informações e afirmou que o tratamento diz respeito a cerca de um terço das marcas produzidas pela empresa na França, mas um relatório indica que todas as marcas da empresa passaram por purificação.

O jornal Le Monde e a emissora de rádio Radio France descobriram a existência de uma fraude que já dura anos. A empresa Nestlé, que detém mais de um terço do mercado de águas engarrafadas na França, vende águas que passaram por processos de purificação como sendo minerais, entre elas, as conhecidas Perrier, Vittel e Pure Life (vendida no Brasil com o nome Pureza Vital).

Fábrica da água Perrier, na França
Fábrica da água Perrier, na França - Martin Bureau - 24.nov.2010 / AFP

Para compreender o que está em jogo, é necessário entender a regulamentação relativa à água engarrafada na França. O código de saúde pública define três tipos de água engarrafada: águas minerais naturais, que têm "pureza original" —fazem parte deste grupo as famosas Perrier, Vittel, Evian—, o segundo grupo são as águas de nascente e o terceiro, as águas tornadas potáveis por tratamento.

O último grupo pode ser submetido ao mesmo tipo de tratamento aplicado à água da torneira. Já as águas minerais naturais e as águas de nascente têm em comum o fato de estarem —normalmente— protegidas dos riscos de contaminação e poluição porque são extraídas de lençóis freáticos muito profundos e, em princípio, "microbiologicamente saudáveis".

Estas bebidas só podem ser sujeitas a um número muito limitado de tratamentos de purificação. O uso de sistemas de purificação como filtros de carbono ou UV (ultravioleta) é estritamente proibido.

Outro dado importante é que a água mineral é comercializada por preços até 100 vezes mais altos que as águas tratadas.

Conivência do governo

O ponto de partida da investigação foi uma reunião interministerial que aconteceu em fevereiro de 2023, entre o gabinete da primeira-ministra na época, Élisabeth Borne, e os ministérios da Economia e da Saúde. Na pauta de discussões estava a empresa Nestlé e suas fábricas de produção de água engarrafada na França.

A Radio France e o Le Monde tiveram acesso à ata da reunião que fala sobre planos de "ação" e de "transformação" das fábricas de condicionamento de água e de "vigilância reforçada bacteriológica e virológica da qualidade da água".

Também consta do documento que "em resposta às demandas do grupo" e "após diferentes intercâmbios com os representantes da Nestlé Waters", o gabinete da primeira-ministra concede à Nestlé "a possibilidade de autorizar a modificação dos decretos e a prática da microfiltração inferior a 0,8 micron".

Após denúncias de um ex-empregado de uma empresa de águas, o governo francês já havia ordenado um inquérito administrativo em outubro de 2021, não apenas da Nestlé em particular, mas de todas as fábricas de embalagens de água estabelecidas na França, para avaliar a utilização de tratamentos não autorizados por fabricantes.

Manifestantes realizam protesto na entrada da fábrica da Nestlé Waters, em outubro de 2023
Manifestantes realizam protesto na entrada da fábrica da Nestlé Waters, em outubro de 2023 - Jean-Christophe Verhaegen - 24.out.2023 / AFP

O governo pediu à Igas (Inspeção Geral de Assuntos Sociais) que analisasse "que impacto podem ter estes tratamentos, ou a sua cessação, na qualidade sanitária da água".

No total, foram realizadas 32 inspeções, sobretudo nas fábricas do grupo Nestlé.

As conclusões deste relatório, apresentado com seis meses de atraso e na maior confidencialidade, em julho de 2022, ao governo (e que o Le Monde e a unidade de investigação da Radio France puderam consultar), são contundentes.

"O trabalho permitiu revelar que quase 30% das designações comerciais sofrem processamento não conforme", disse o documento. Um terço das marcas de água engarrafada analisadas não cumpre os regulamentos, e o nível de incumprimento, segundo os inspetores, seria na realidade "muito provavelmente superior", tendo em conta "as dificuldades dos serviços de controle em identificar práticas deliberadamente ocultadas".

No caso da Nestlé, 100% das marcas são afetadas pela utilização de tratamentos proibidos. De acordo com o relatório, é evidente que a Nestlé não só utiliza tratamentos ilegais nas suas fábricas, mas também escondeu estas práticas deliberadamente. A empresa também enganou os agentes de controle das agências regionais de saúde, servindo água pré-tratada para os testes e não diretamente da fonte.

Por que a Nestlé utilizou essas práticas?

Os recursos aquíferos explorados pela Nestlé são regularmente contaminados microbiologicamente, em particular por bactérias como a Escherichia Coli. Traços de poluentes químicos, como metabólitos de pesticidas (moléculas alteradas), também foram descobertos na água Perrier.

Os tratamentos não conformes implementados destinavam-se, portando, não só a prevenir uma possível contaminação da água, mas também a "limpá-la" de contaminantes. Como indicado no relatório Igas, "estas práticas não estão claramente em conformidade com o código de saúde pública. A Nestlé Waters anunciou a implementação de um plano para voltar à normalidade, mas não é certo que a deterioração da qualidade do recurso possa ser contida", afirmou.

"A evolução das condições climáticas e ambientais, com a multiplicação de eventos extremos, como secas ou inundações, aliada à expansão das atividades humanas no entorno de nossos locais, tornam muito difícil manter a estabilidade das características essenciais de uma água mineral natural", justificou a Nestlé Waters em resposta à investigação.

Perigo para a saúde

Em princípio, os tratamentos, embora não conformes, protegeram os consumidores da deterioração da qualidade da água. "A segurança sanitária dos nossos produtos sempre foi garantida e continua a ser a nossa prioridade absoluta", afirmou a Nestlé na sua resposta ao Le Monde e à unidade de investigação da Radio France.

O Ministério da Economia assegurou ainda que "nesta fase não foi identificado nenhum risco para a saúde ligado à qualidade da água engarrafada". Apesar de ser fraudulenta, do ponto de vista da saúde, a implementação dos tratamentos reforçou a segurança dos produtos.

A Nestlé afirmou também ter "suspendido" alguns poços utilizados para a produção das águas Hépar e Contrex, e ter iniciado a "produção de uma nova gama de bebidas à base de água para consumo humano" no sul da França. De acordo com os veículos de informação que participaram da investigação, é evidente que a multinacional suíça deixou de explorar suas fontes mais contaminadas, ou mudou sua utilização.

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