'Ser honesto é obrigação, não é qualidade', dizia Tia Luiza; conheça a história da fundadora do Magalu

Sem filhos, a mulher que criou uma das maiores varejistas do país fez da sobrinha Luiza Helena sua sucessora

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São Paulo

No interior mineiro, em Ibiraci, divisa com o estado de São Paulo, uma vendedora chamava a atenção na Casa Mattos: Luiza. Na pequena loja que vendia de tudo, de materiais de construção a fumo, passando por roupas, tecidos e botas de couro, ela fazia questão de criar empatia com a clientela.

Nos anos 1940, as mulheres tinham vergonha de calçar 38 ou algum número maior. Luiza sabia disso. Quando chegava uma freguesa em busca deste número, dizia que iria buscar "sapatos para pés pequenos". Trazia caixas com calçados 38. Quando a cliente afirmava que aquele não era um número pequeno, Luiza tinha a resposta na ponta da língua: "Minha filha, você nem imagina o tamanho do pé de outras clientes que aparecem por aqui! Acredite, o seu pé é pequeno."

A história é narrada pelo jornalista Pedro Bial, autor do livro "Luiza Helena –Mulher do Brasil" (editora Gente, 2022) sobre a Luiza Helena Trajano Inácio Rodrigues, presidente do conselho de administração do Magazine Luiza.

O livro sobre a empresária começa com a história de Luiza Trajano, a vendedora da Casa Mattos, que mais tarde se tornaria a fundadora do Magazine Luiza, e que faleceu nesta segunda-feira (12), aos 97 anos, de causas naturais, depois de passar os últimos anos sofrendo de demência.

Foto de mulher branca, em preto e branco
Empresária Luiza Trajano, fundadora do Magazine Luiza, no final dos anos 50. - Divulgação

"Luiza vendia de tudo e lidava com todo tipo de gente, tornando-se especialista em seres humanos", relata Bial. "Era irresistível."

Tia e madrinha de Luiza Helena, a Luiza não teve filhos e fez da sobrinha e xará a sua sucessora nos negócios. O próprio nome de Luiza Helena foi diretamente influenciado pela tia.

"Já estava decidido que a menina iria se chamar Sônia. De saída para o cartório a fim de fazer o registro, Clarismundo [o pai] foi interceptado pela cunhada Luiza. 'Por que não a chamam de Heloisa Helena?'. Era o nome de uma cliente dela, muito simpática, querida, e soava bem. Lá se foi Clarismundo. Ao voltar, comunicou a todos que tinha aceitado a sugestão, mas contribuído com mais uma homenagem. A filha fora registrada como Luiza Helena. A tia não se conteve de satisfação, assim como as outras irmãs", relata Bial.

A mãe de Luiza Helena, Jacira, tinha três irmãs e quatro irmãos. Dois deles —Luiza e Íris— deram origem à vocação varejista dos Trajano. A Casa Mattos, onde Luiza se destacou, pertencia a Íris.

Luiza entendia o que se passava na cabeça do cliente e procurava minimizar complexos, tirar dúvidas, projetar alegrias e, é claro, fechar vendas, seu principal objetivo.

Foi assim que chamou a atenção da concorrência, a Casa Hygino Caleiro, a loja mais sofisticada de Franca, a 40 quilômetros de Ibiraci. Luiza foi convidada em 1952 a ser vendedora do estabelecimento, fundado em 1822, e cruzou a divisa de Minas para São Paulo, para nunca mais voltar.

Em Franca, ela conheceu o futuro marido, Pelegrino José Donato, um caixeiro-viajante. Casaram-se em 1956.

Depois do casamento, Luiza descobriu que uma loja estava à venda: A Cristaleira, especializada em "presentes finos", bem no centro de Franca. "Luiza não queria perder a chance. Empenhou o que conseguiu juntar com o marido Pelegrino e deu a entrada para comprar a loja. Era tudo o que tinham, o dinheiro da entrada. Para honrar as outras parcelas, não haveria hora de descanso, folga ou distração. Os dias seriam mais longos e as noites mais curtas. Entre tudo ou nada, tia Luiza estava disposta a tudo", conta o livro.

Foto em preto e branco traz duas mulheres jovens e brancas
Luiza Helena Trajano Rodrigues ao lado da tia, Luiza Trajano, fundadora do Magazine Luiza. - Divulgação

Era o ano de 1957 e o Brasil se industrializava, sob o ritmo do governo de Juscelino Kubitschek. Novidades como liquidificadores, aspiradores e enceradeiras chamavam a atenção da população.

O nome A Cristaleira soava ultrapassado e Luiza decidiu promover um concurso na rádio local, a Hertz. O ouvinte que sugerisse o nome mais votado ganharia um sofá. Venceu Magazine Luiza.

Mulher de vontade firme e regras rígidas, fazia questão que os funcionários dessem bom dia logo na chegada de manhã ao trabalho (sob o risco de voltarem para a calçada e entrarem de novo na loja, com a saudação).

.Luiza Trajano, fundadora do Magazine Luiza, que morreu aos 97 anos
Luiza Trajano, fundadora do Magazine Luiza, que morreu aos 97 anos - Divulgação

A economia era sempre a regra: quem fosse ao banco pagar as contas deveria trazer de volta os clipes e elásticos de dinheiro. Todos os funcionários também tinham de ter a tabuada na ponta da língua.

Quando soube que um dos seus funcionários mais próximos, Hermínio, um "faz tudo" do Magazine Luiza, estava com câncer, e era obrigado a viajar 270 quilômetros de Franca até Barretos para o tratamento uma vez por semana, Luiza e o marido decidiram equipar a Santa Casa de Franca com toda a aparelhagem necessária para a quimioterapia. Foi o pontapé para a fundação do Hospital do Câncer da cidade.

Nascida em Cristais Paulista (SP), em 20 de setembro de 1926, Luiza viveu a maior parte da sua vida em uma casa na rua Monsenhor Rosa, em Franca, vizinha à primeira loja da rede, chamada de "nave mãe".

Passou o comando da rede para a sobrinha Luiza Helena em 1991, depois de um embate com o marido, que morreu no final de 2018, aos 94 anos: conselheiro da empresa, Pelegrino não aceitava a sobrinha no comando, por machismo.

"Uma pessoa interessantíssima, muito inteligente, uma empreendedora nata", disse à Folha Marcelo Silva, vice-presidente do conselho de administração do Magazine Luiza, que conheceu a fundadora quando se tornou CEO da varejista, em 2009. "Assim como Luiza Helena, sempre muito íntegra e determinada."

No final dos anos 1990, um vídeo institucional produzido pelo Magazine Luiza, ao qual a reportagem teve acesso, trouxe o depoimento da fundadora. Nele, Luiza diz ter "muito orgulho, mas muito orgulho do Magazine Luiza", e deixa claro que a personalidade dela e a cultura da empresa que criou se confundem.

"Falar mal do Magazine Luiza é falar mal de mim mesma. É uma empresa séria, uma empresa boa, na qual eu procurei passar, para a Luiza Helena e para o Onofre, meu irmão, que são mais novos do que eu, tudo aquilo que eu acho que é certo. Tem que ser honesto, o que é obrigação, não é qualidade, e tem que ser boa para pagar. Tudo isso é obrigação da gente."

(Colaborou Marcelo Toledo, de Ribeirão Preto)

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