Área técnica do TCU diz que limitar contingenciamento a R$ 25,9 bi configura infração

Parecer desmonta tese de Haddad para restringir bloqueio em caso de receitas menores; documento ainda será submetido a ministros

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Brasília

A área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União) se posicionou contra a possibilidade de o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) limitar o contingenciamento de despesas a R$ 25,9 bilhões em caso de frustração de receitas para cumprir a meta de déficit zero em 2024.

Se a perda de arrecadação apontar necessidade de bloqueio acima desse valor, a imposição de um contingenciamento menor vai configurar infração, na avaliação dos técnicos da corte de contas. Os gestores que assinarem a decisão poderão ser punidos pelas regras da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e da Lei 10.028/2000, que trata dos crimes contra as finanças públicas.

Em outro trecho do parecer técnico, os auditores ressaltam que a Lei 1.079/1950 (também conhecida como Lei do Impeachment) classifica como crime a infração a qualquer dispositivo da Lei Orçamentária.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em reunião ministerial do governo Lula nesta segunda-feira (18) - Pedro Ladeira/Folhapress

"A depender de uma profunda discussão técnica, jurídica e política, o descumprimento da meta fiscal –ao longo do exercício e/ou ao final do ano– pode vir a ser enquadrado como crime de responsabilidade, cuja admissibilidade cabe à Câmara dos Deputados, e o processamento, ao Senado Federal", diz o documento, obtido pela Folha.

O parecer ainda será submetido ao relator, ministro Jhonatan de Jesus, designado para apreciar a consulta do Ministério do Planejamento sobre o tema. Ele pode concordar com a área técnica ou adotar entendimento diferente. O voto do relator ainda precisa ser apreciado no plenário do TCU.

O parecer técnico desmonta o entendimento do ministro Fernando Haddad (Fazenda) e de outras áreas do governo de que é possível fazer um contingenciamento menor com base em dispositivo da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) deste ano.

A lei do novo arcabouço fiscal autoriza uma contenção de até 25% das despesas não obrigatórias (chamadas de discricionárias) para cumprir a meta fiscal. Já o artigo da LDO, que está no centro da controvérsia jurídica, diz que não poderão ser alvo de contingenciamento as despesas necessárias para garantir a expansão de gastos mínima prevista no arcabouço fiscal, que é de 0,6% acima da inflação.

O artigo foi incluído com o objetivo de limitar o tamanho da trava após Haddad ser pressionado por alas do próprio governo a flexibilizar a meta de déficit zero. A inserção do instrumento foi essencial para convencer Lula, preocupado com o impacto sobre os investimentos públicos, a apoiar a visão da Fazenda e manter o alvo inalterado.

Para os técnicos do TCU, a interpretação jurídica do governo para restringir o tamanho do contingenciamento "abala a harmonia do sistema normativo que rege as finanças públicas e não é a melhor opção".

O entendimento dos auditores é de que o bloqueio de verbas pode chegar a 25% das despesas discricionárias (que incluem custeio e investimentos), como previsto na lei do novo arcabouço fiscal. Em valores de hoje, isso representa quase R$ 55 bilhões.

O governo, porém, não quer correr o risco de precisar impor uma trava desse tamanho. Restringir o alcance do bloqueio é peça-chave para Lula, que não quer prejudicar a liberação de verbas para os investimentos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Deputados e senadores também não querem atrasos no cronograma de empenho das emendas parlamentares em ano de eleições municipais.

Os técnicos do TCU veem no dispositivo uma possível afronta ao novo arcabouço fiscal e também ao comando constitucional que prega a condução da política fiscal de forma a garantir uma trajetória sustentável da dívida pública.

"A LDO 2024, ao reduzir o valor máximo permitido para limitação de empenho e movimentação financeira, quando houver necessidade de contingenciamento pelo risco de não cumprimento das metas fiscais, possibilita o aumento do gasto acima do previsto conforme os critérios da LC 200/2023 [arcabouço fiscal], mesmo a custo de não cumprimento da banda inferior da meta fiscal, em flagrante desacordo com o disposto no § 3º do art. 2º da LC 200/2023 e contribuindo para um potencial aumento da dívida pública maior do que o previsto conforme o arcabouço do Regime Fiscal Sustentável", diz o documento.

Como mostrou a Folha, a área técnica do Tesouro Nacional recomendou veto a esse dispositivo da LDO, uma vez que permitir um bloqueio menor que o necessário para alcançar a meta fiscal "contraria o interesse público" e permitiria o aumento da dívida. O argumento, porém, foi superado por um parecer do secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, que dispensou o veto com base em entendimento jurídico da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional).

O parecer da unidade técnica do TCU foi concluído na última sexta-feira (15), às vésperas do envio ao Congresso do relatório bimestral de avaliação de despesas e receitas do Orçamento deste ano.

O documento, a ser encaminhado na sexta-feira (22), indicará o tamanho da necessidade de bloqueio ou contingenciamento das despesas.

Estimativas preliminares do governo indicam que o cenário para o contingenciamento no primeiro relatório bimestral está mais benigno com a alta da arrecadação —embora ainda haja necessidade de bloqueio de R$ 5 bilhões a R$ 15 bilhões para evitar estouro de outra regra, a do limite de despesas. Segundo técnicos do governo, a regra da LDO não alcança nem limita essa modalidade de bloqueio (quando é o teto de despesas que está em risco).

Pessoas a par do tema no TCU ouvidas pela Folha afirmam que a melhora no desempenho da arrecadação no primeiro semestre adiou a necessidade de o governo ter que limitar o contingenciamento a um valor menor. Por isso, o resultado preliminar desfavorável da consulta não deve ser um fator de risco por ora.

A consulta foi feita pelo Planejamento para dar maior segurança aos técnicos do governo do que fazer quando as reavaliações de receitas e despesas apontarem eventual necessidade de segurar gastos para cumprir a meta. Procurado, o ministério não quis comentar.


ENTENDA O IMPASSE EM TORNO DO CONTINGENCIAMENTO

O que diz o novo arcabouço fiscal?

O novo arcabouço fiscal determina que o governo observe duas regras: um limite de gastos e uma meta de resultado primário (verificada a partir da diferença entre receitas e despesas, descontado o serviço da dívida pública). Para 2024, a meta é alcançar o déficit zero.

Em caso de frustração de receitas, o governo pode se vir obrigado a segurar despesas por meio do contingenciamento para evitar o estouro da meta.

O arcabouço fiscal diz que esse contingenciamento deve preservar pelo menos 75% das despesas discricionárias (que incluem custeio e investimentos públicos). Na prática, a trava só pode ir até 25%, o equivalente hoje a quase R$ 55 bilhões.

Qual é o entendimento do governo?

A ala política do governo temia que um contingenciamento nesse montante comprometesse programas como o PAC e pressionou por uma flexibilização na meta fiscal. O ministro Fernando Haddad contornou a pressão com a promessa de que a trava precisaria respeitar outra regra do arcabouço fiscal, a que prevê uma expansão mínima das despesas de 0,6% acima da inflação.

Sob essa interpretação, o contingenciamento máximo seria de R$ 25,9 bilhões. Apesar da resistência de outras áreas do governo, essa tese foi incorporada à LDO durante a votação no Congresso Nacional e, por último, levada ao TCU em forma de consulta para dar maior segurança jurídica aos gestores.

O que disse a área técnica do TCU?

Os auditores da corte de contas não concordaram com os argumentos do governo e alertaram que a realização de um contingenciamento de até R$ 25,9 bilhões, num cenário em que a necessidade de contenção seja maior, vai configurar infração, passível de punição pelas regras da LRF e da lei que trata de crimes contra as finanças públicas.

O que acontece daqui para frente?

O parecer da área técnica do TCU ainda será avaliado pelo relator, ministro Jhonatan de Jesus, e apreciado no plenário da corte de contas.

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