IA ameaça destruir negócios jornalísticos, mas licenciamento é esperança, diz presidente de fundo de mídia

Para Nishant Lalwani, redução de leitores que chegam por mecanismos de busca preocupa, mas venda de dados para treinar modelos traria receita estável

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Oxford

A inteligência artificial é uma grave ameaça ao modelo de negócios dos veículos de mídia. Esse é o alerta de Nishant Lalwani, 42, presidente do Fundo Internacional para Mídia de Interesse Público (Ifpim, na sigla em inglês).

"Com a IA, veremos uma maior erosão do modelo de negócios dos veículos de comunicação, pela forma como os mecanismos de busca vão funcionar, sem links que direcionam a sites. Se isso diminuir massivamente o tráfego para sites de notícias, vai reduzir o que resta de publicidade para os veículos de mídia", disse Lalwani, que co-fundou, ao lado da Nobel da Paz, Maria Ressa, o fundo que financia iniciativas de jornalismo de interesse público.

Mas há uma esperança para a viabilidade financeira das organizações de mídia, e ela também vem da IA, segundo Lalwani.

Homem de cabelos escuros curtos sorri para a câmara. Veste camisa branca sem gravata e paletó azul marinho. usa óculos redondos de aros grossos
Nishant Lalwani, presidente do Fundo Internacional para Mídia de Interesse Público - Divulgação

"O modelo de licenciamento (de conteúdo de veículos de imprensa para empresas de IA treinarem seus modelos), nos termos certos, representa um acordo de remuneração contínua, uma valorização e um pagamento pelo jornalismo produzido. Os grandes modelos de linguagem (de IA) vão precisar de dados para treinamento e embasamento em bahasa, em português, e assim por diante. Veículos nacionais de mídia serão muito importantes como fontes de informação e conteúdo."

Por que foi necessário criar um fundo de apoio ao jornalismo?
Houve uma falha de mercado no setor de jornalismo de interesse público. O secretário-geral da ONU [Antonio Guterres] falou em extinção da mídia.

O público precisa de informações, mas não existe um modelo financeiro que sustente isso comercialmente, ou seja, há uma falha de mercado.

Quando há uma falha de mercado na educação primária ou em vacinas, o estado intervém, porque é muito importante preservar esse bem público. A segunda coisa que se faz é regulamentar para garantir que esse bem seja acessível.

Quando comecei a trabalhar com mídia, percebi que é preciso ter mais subsídios estatais, mas o problema é que não podemos ter governos financiando diretamente a mídia, por razões óbvias, como a influência política. Então criamos o Ifpim para ser um mecanismo pelo qual estados, empresas e outros podem financiar a mídia, sem que seus interesses sejam refletidos na política editorial ou na estratégia comercial.

Os beneficiários do fundo são principalmente pequenos e médios veículos de comunicação, certo?
No momento, temos dois tipos diferentes de atividades. A primeira é financiar diretamente organizações de mídia, como o Nexo e o Marco Zero no Brasil. Ajudamos os veículos a custear suas operações, quando há grande dificuldade de financiamento.

Por exemplo, financiamos o El Confidencial, com sede na Costa Rica, é realmente importante que eles possam continuar a fazer jornalismo [era um jornal baseado na Nicarágua que sofreu perseguição da ditadura de Daniel Ortega e agora é tocado do exílio]. Estamos financiando organizações na Ucrânia, na Geórgia e mídias que estão desenvolvendo novos modelos de negócios e de gerar receita, como o Mutante, na Colômbia, que mira o público jovem.

Também financiamos projetos que tentam corrigir as falhas de mercado, como fundos nacionais para o jornalismo, incluindo Serra Leoa, e no Brasil, o da Ajor (Associação de Jornalismo Digital). Fomos o primeiro financiador do projeto, com um valor de US$ 300 mil dólares e eles agora conseguiram captar cerca de US$ 1,8 milhão.

Recentemente, a Meta anunciou que não mais participará do Código de Barganha da Austrália, ou seja, deixará de pagar (e publicar) conteúdo noticioso. No Canadá, o Facebook deixou de publicar notícias após a Lei Online do país entrar em vigor, e o Google acabou fechando um acordo com os veículos de mídia em valor muito inferior ao esperado. Na sua opinião, qual é o modelo mais promissor?
Os modelos mais promissores são os que se formam a partir de um acordo comercial, e não um subsídio contínuo [como doações de entidades filantrópicas ou fundos criados pelas big tech]. Precisa ser inclusivo, não beneficiar apenas grandes veículos, e deve haver transparência sobre quem e quanto está sendo pago.

O modelo australiano [código de barganha para negociação entre big tech e veículos] excluiu muitas organizações pequenas e médias, elas não tinham poder para negociar, precisamos de algum tipo de negociação coletiva para fazer isso.

As plataformas incluídas também são um ponto problemático. Facebook e Google entraram, mas o LinkedIn, que é uma grande fonte de notícias, não.

Há muitas questões sobre quem está usando o conteúdo de notícias: por exemplo, todas as novas empresas importantes de IA e subsidiárias precisam ser consideradas. Mas eu acho que esse modelo é promissor, é o caminho certo a seguir, só que ainda não foi bem implementado. A mesma coisa para o licenciamento de conteúdo.

No Brasil, há uma percepção de que seria melhor ter um modelo que não preveja pagamento por conteúdo usado pelas plataformas, mas, sim, pagamento pelas externalidades negativas causadas pelas big techs. Essa percepção ganhou força depois de a Meta anunciar que não ia mais pagar por notícias na Austrália –ou seja, as empresas de internet podem simplesmente dizer que não querem mais usar o conteúdo jornalístico e deixar de pagar.
Quando falamos sobre códigos de barganha ou acordos de licenciamento com empresas de IA, há um reconhecimento do valor do trabalho que os jornalistas estão fazendo. Há um reconhecimento de que o jornalismo é fundamental para o modelo de negócio [das big tech], não apenas os fatos, mas também o tipo de narrativa e a confiança gerada por essas narrativas. Mas a ideia do imposto punitivo é bastante importante, porque precisamos minimizar essas externalidades. Acho que ambos precisam ser considerados.

Quais são os modelos de fundos eficazes para financiar o jornalismo?
O Ifpim foi projetado para ter completa independência de nossos doadores. Temos um conselho liderado por Maria Ressa e Mark Thompson que decide sobre a estratégia. Os fundos precisam garantir independência tanto de seus financiadores quanto do governo que possa estar envolvido.

Na hora de financiar, é preciso dar às redações dinheiro para investir em capacidades de IA. Caso contrário, essa lacuna só vai crescer —como aconteceu com as redes sociais há 20 anos.

Também é necessário ter uma alta tolerância ao risco, porque precisamos experimentar, não temos as respostas. É preciso ter uma tolerância bastante alta ao fracasso.

No Brasil, há uma discussão sobre tributar as grandes empresas de tecnologia e estabelecer um fundo. Seria vinculado ao governo. E, por outro lado, como em Taiwan, o Google estabelece um fundo pequeno para apoiar jornalismo. É possível ter um fundo eficiente gerenciado pelo governo ou uma big tech?
Com a governança correta, sim. Obviamente, onde há apenas uma entidade, como o Google no fundo em Taiwan, em uma relação bilateral, ela mantém o direito de interromper o financiamento a qualquer momento. Está sempre claro onde está o poder.

Como o Ifpim é financiado?
Somos financiados por 17 organizações, 8 governos e os outros são corporações e filantropias. Ninguém é um doador majoritário.

O Google é um doador do Ifpim. O sr. vê uma contradição nisso?
Acho que Maria [Ressa] é um bom exemplo de abordagem. Ela está sempre disposta a trabalhar com o Google, com o Facebook. Mas ela também está comprometida a pensar de forma independente sobre o futuro do jornalismo e criticá-los quando necessário. O Google responde por 4% do nosso financiamento. É uma quantia pequena. Somos muito claros sobre nosso propósito principal aqui: apoiar a mídia de interesse público da maneira que achamos que gerará a maior estabilidade econômica e resiliência para essas organizações.

Então é importante o fato de ser apenas 4%, certo? Porque em muitos países do Sul global e outros, as plataformas basicamente financiam todas as associações de jornalismo, 80% dos orçamentos, e também a checagem de fatos. Como o sr. vê esse tipo de dinâmica?
Em geral, as relações bilaterais nunca serão muito sustentáveis em termos de independência de uma entidade ou de contribuições financeiras contínuas. Mas as organizações de mídia não tiveram escolha. Não é como se houvesse outras pessoas se oferecendo para financiar. Apenas 0,3% de toda a ajuda externa de governos do mundo é destinada a apoiar a mídia.

Isso é bastante surpreendente, porque desinformação, integridade da informação, integridade das eleições estão em todos os discursos dos políticos. Ainda assim, eles estão gastando só US$ 500 milhões por ano, é irrisório.

A OCDE acabou de fazer um estudo mostrando que apenas 8% desse valor —US$ 40 milhões por ano—vai para organizações de mídia em países em desenvolvimento.

Queremos que o montante total de financiamento para a mídia chegue a pelo menos 1% do total de ajuda externa. Isso seria US$ 1 bilhão por ano, quantia significativa para apoiar a inovação, o investimento em IA, e não apenas organizações de mídia menores.

O fundo criado no Canadá em 2019 e a maioria dos fundos estão financiando pequenos e médios meios de comunicação, muitas vezes liderados por grupos minorizados, ou em desertos de notícia, ou veiculos de nicho. Mas muitos grandes meios de comunicação também estão em uma situação financeira muito ruim e é lá que é feita a maioria das reportagens investigativas. Qual é a esperança para esses meios de comunicação maiores?
Estamos muito interessados em financiar alguns desses meios. Por exemplo, a Joy News no Gana, que faz parte do grupo multimídia Joy, um dos maiores do país. Demos para eles um grant para acelerar a digitalização de vários de seus produtos de notícias.

Mas pode ser complicado financiar grandes organizações de mídia porque várias delas têm capital aberto, são negociadas em Bolsa. Em outros casos, os veículos grandes pertencem a pessoas politicamente muito conectadas. Temos que garantir que sejam independentes.

Na sua definição, o que é jornalismo de interesse público?
Trata-se de jornalismo independente, que não representa nenhum interesse político ou pessoal em suas reportagens. São organizações que servem ao público com informações baseadas em fatos em vez de servir a seus proprietários ou a um partido político. Esse é o cerne da questão.

Quais são as principais oportunidades e os principais desafios da IA para o jornalismo? Acho que uma grande oportunidade na IA é que ela reformula um pouco a conversa regulatória. A Open AI fez acordos de licenciamento com a AP e com a Axel Springer.

O modelo de licenciamento, nos termos certos, representa um acordo de remuneração contínua, uma valorização e um pagamento pelo jornalismo produzido. A longo prazo, o licenciamento deve desempenhar um papel importante. Os grandes modelos de linguagem (de IA) vão precisar de dados para treinamento e embasamento em bahasa, em português, e assim por diante.

Veículos nacionais de mídia serão muito importantes como fontes de informação e conteúdo. E então acredito que eles estarão dispostos a pagar pela informação em que confiam.

Mas também há ameaças. Com a IA, veremos uma maior erosão do modelo de negócios dos veículos de comunicação, pela forma como os mecanismos de busca vão funcionar, sem links que direcionam a sites.

Se isso diminuir massivamente o tráfego para sites de notícias, vai reduzir o que resta de publicidade para os veículos de mídia. Isso é uma enorme ameaça porque a publicidade continua sendo uma das poucas fontes independentes de receita, muitas organizações ainda têm de 30% a 40% de sua receita ligada a anúncios.

Para mim, essa é provavelmente a maior ameaça, saber se as organizações de mídia vão continuar a receber tráfego de mecanismos de busca.

Uma reportagem recente no New York Times relatou como a Open AI e o Google estão desesperados para obter mais e mais conteúdo de notícias para treinar seus modelos de IA. O fato de que a Open AI precisaria de quantidades cada vez maiores de conteúdo de notícias, de qualidade, para treinar e atualizar seus modelos, poderia eventualmente compensar a perda de tráfego?
Depende dos termos dos acordos de licenciamento. É necessário ter transparência sobre como será determinado o valor pago pelo conteúdo. No Brasil e outros países, ainda há muita disparidade de poder. Você pode ser o maior jornal do país, mas ainda é um pequeno veículo de mídia negociando com a Open AI. Então, como você se organiza para aumentar seu poder de barganha? E como calcula o valor do conteúdo?

Uma organização pequena com um público reduzido, mas publicando investigações e furos muito importantes, como se compara a informações mais padrão sobre resultados esportivos, em um grande veículo? Não dá para usar a audiência como o principal parâmetro.


Raio-x

Nishant Lalwani, 42, é presidente e cofundador do Fundo Internacional para Mídia de Interesse Público. Antes disso, ele foi vice-presidente global de programas da Luminate. Ele se formou em engenharia na Universidade de Cambridge, onde fez mestrado em engenharia aeronáutica, e fez um MBA na Universidade Harvard.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.