Descrição de chapéu Entrevista da 2ª

'Lidamos com uma mão de obra mal preparada e infeliz', diz economista

Doutora e ex-economista-chefe da XP, Zeina Latif afirma que sonho prometido à classe média não foi entregue

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São Paulo

Zeina Latif não deseja passar imagem de ingratidão. Diz ter sido feliz como gestora no mercado financeiro, mas chegou o momento em que o curto ou curtíssimo prazo de carteira de investimentos não a satisfazia. Ela queria mais.

Uma das poucas mulheres em cargos de chefia nas finanças, ela deixou a XP, onde era economista-chefe, em 2020. Foi secretária de Desenvolvimento Econômico do estado de São Paulo por seis meses em 2022 até se tornar sócia-diretora da Gibraltar Consulting.

Zeina Latif antes de palestra no Semesp, em São Paulo
Zeina Latif antes de palestra no Semesp, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

É onde tenta achar o consenso entre economia, demandas sociais e, principalmente, educação em um mundo que, ela mesmo concorda, é cada vez mais complicado.

"Hoje lidamos com uma sociedade com uma mão de obra mal preparada e infeliz. Muitas vezes, os jovens que vão para a escola não veem o retorno daquele tempo investido, e isso afeta a produtividade, a mão de obra e a cidadania", disse ela à Folha antes de palestra sobre o cenário econômico e o impacto na educação, na posse, em março, de Lúcia Teixeira na presidência do Semesp, entidade que representa instituições de ensino superior no Brasil.

Para a doutora em economia pela USP (Universidade de São Paulo), a maior ameaça ao crescimento do Brasil está em uma cisão que provoca um clima de desconfiança generalizada. Algo que pode chegar ao "ponto de não retorno", como define. Especialmente em como pobres e ricos enxergam uns aos outros.

Em 2022, a sra. publicou o livro "Nós do Brasil: Nossa Herança e Nossas Escolhas", que fala sobre questões históricas e como elas se relacionam no histórico de subdesenvolvimento nacional. O país mudou desde então?
Do que escrevi, reafirmo a convicção de ver um país que aos poucos amadurece. Preocupa o ritmo lento. Nós temos situações muito preocupantes na parte da educação, dos indicadores sociais, no meio ambiente, da violência.

A preocupação dos economistas é que vamos muito devagar nesses avanços, e isso gera pontos de não retorno.

Um ponto de amadurecimento é ter concorrência na política. A gente pode gostar ou não de um lado ou se decepcionar com um político ou outro, mas o fato é que temos hoje um país com visões da sociedade que se refletem na política.

Mas não há também um clima de decepção quanto ao crescimento da economia?
A gente tem, desde os protestos de 2013, uma sociedade que se tornou mais exigente. Aquele fenômeno da nova classe média é um grupo que está frustrado. O sonho prometido não foi entregue.

Nós tivemos uma recessão gravíssima no país. Ainda não houve a volta para os patamares pré-recessão. Por exemplo, nos bens de consumo, não retornamos ao nível pré-crise, sendo que a nova classe média vinha em uma rampa de crescimento.

Ao mesmo tempo, esta é uma sociedade mais vibrante. Ficaria preocupada em ter um quadro econômico como esse em uma sociedade apática.

É mais difícil encaixar uma política econômica em sociedade polarizada com anseios opostos?
A maioria dos países ricos é democrática. O que temos é de reforçar os canais de comunicação. E aqui vou além da economia. Quanto mais a gente tiver um sistema que consegue traduzir esses anseios dos diferentes grupos na agenda pública, mais maduro está ao país.

Hoje em dia não vejo políticos desconectados da sociedade. A grave recessão de 2014 a 2016 foi fruto de uma desconexão da classe política com os problemas econômicos do país. Houve muitos erros de política econômica apesar dos alertas.

A sra. percebe um descontentamento com os rumos dos últimos anos?
É para ter descontentamento mesmo porque a gente está falando de um país que, se por um lado tem algum crescimento da economia, por outro cresce de forma muito desigual. Isso reforça a necessidade de acelerar a reforma do Estado.

A gente falha miseravelmente na questão da igualdade de oportunidades. Criamos uma cisão na sociedade, e o aspecto que me preocupa mais é a sensação de pobre contra rico.

Preocupa a desconfiança das classes mais populares em relação à elite. Ninguém confia no governo, o pobre não confia no rico, que não confia nas instituições. Isso é um problemão, é uma falha do Estado na provisão de serviços públicos de qualidade de forma acessível.

Por isso, a gente precisa acelerar as reformas para ter uma ação estatal mais justa.

Por isso que a sra. escreveu que o pecado original foi negligenciar a educação?
Ah, foi. Historicamente a nossa elite não valorizou a educação. Isso desde a forma como o país nasceu como nação e que teve uma escravidão tão longa.

Não havia interesse do proprietário rural porque não queria perder essa mão de obra, o olhar racista de que não era preciso cuidar do negro depois de ele ser liberto.

No dia seguinte [ao fim da escravidão], ninguém lembrou que tinha uma sociedade a ser cuidada. Os Estados Unidos têm racismo? Têm racismo, mas o país cuidou da educação dos libertos.

Uma coisa é universalizar a educação, outra é conseguir ensino de qualidade. Ensino de qualidade não é só pôr recurso. Você tem uma questão de gestão, tem de enfrentar sindicatos, precisa ter uma sofisticação institucional muito maior.

A gente, na prática, não conseguiu ainda universalizar, né? Se essa é a melhor forma de ascensão, se é a melhor forma de distribuição de renda, a gente tem falhado muito.

Hoje lidamos com uma sociedade com uma mão de obra mal preparada e infeliz. Muitas vezes, os jovens que vão para a escola não veem o retorno daquele tempo investido, e isso afeta a produtividade, a mão de obra e a cidadania.

Se a sociedade não teve acesso à educação de qualidade, cai em discursos populistas, não consegue ter uma visão crítica.

Por isso que a sra. disse que, apesar de ser considerado um país emergente, o Brasil, na prática, não é?
O Brasil é um país emergente. Mas, em relação ao grupo dos demais chamados emergentes, temos um desempenho muito pior. Somos emergentes no sentido da renda média. Mas naquela ideia de país emergente que exibe altas taxas de crescimento, da acumulação de capital, não somos. Não exibimos o desempenho esperado de um país emergente.

A sra. é um caso de sucesso, mas há uma pesquisa do ano passado da Fesa Group mostrando que apenas 17% dos cargos de liderança no mercado financeiro são ocupados por mulheres.

O mercado financeiro é um capítulo à parte. Só 27% das cadeiras nas faculdades de economia são ocupadas por mulheres. Depois, quando vai para a pós-graduação, se torna um funil. São menos mulheres fazendo mestrado e doutorado.

O fato de as mulheres estarem menos presentes nas carreiras ligadas a exatas afeta a participação feminina no mercado financeiro. Melhorou muito, mas há uma barreira.

A gente precisa entender por que as mulheres procuram menos esses cursos. E não é só algo do Brasil. Tem alguma coisa ali atrapalhando as mulheres, e não sei dizer se é cultural ou se não damos os incentivos corretos para as meninas quando são jovens. Mas é claro que a participação tem crescido, e isso gera uma dinâmica favorável para as mulheres.

Quando você está no ambiente masculino, pode ser difícil distinguir o que é machismo, o que é preconceito, o que é o estranhamento do ambiente. Eu passei por algumas situações que foram nitidamente machistas. Mas passei por outras em que havia um estranhamento da presença da mulher.

A sra. se refere a comentários que escutou?
Comentários, atitudes, não ser chamada para reuniões. Passei por tudo isso.

A mulher tem um olhar diferente para as coisas também no mercado financeiro?
No geral, a gente tem uma forma mais ampla de ver os problemas. Os homens costumam focar um determinado assunto. As mulheres conseguem ter olhar mais amplo, mais rico nesse aspecto.

Na pandemia da Covid-19, países dirigidos por mulheres se saíram melhor, eu acho que essa é uma característica feminina, de olhar o problema por vários aspectos.

Isso tem melhorado e vai além da presença feminina. Vale também para diferentes etnias, orientações sexuais. Enfim, a gente está falando de um mundo muito mais complexo.

Não é mais "business as usual". Cada hora é um tema novo que aparece de saúde, de geopolítica e de uma sociedade muito mais complexa. Ter a diversidade nos seus vários aspectos fortalece.

Mas ao mesmo tempo construir um consenso nesse cenário é muito mais difícil?
Muito mais. Construir consensos com o grupo diferente dá mais trabalho. Só que ainda é a melhor forma de lidar com esse mundo mais complexo porque, diante de um problema, são olhares diferentes para a mesma questão.

Cada hora é uma coisa nova a que as empresas têm que se adaptar. É preciso monitorar o que acontece nas redes sociais, monitorar o ambiente de trabalho… São muitas variáveis. Mesmo que seja mais trabalhoso, é o melhor caminho.

Economistas podem ter uma visão muito mais financista do mundo, de "business as usual". A sra. tem uma perspectiva um pouco diferente, mais guiada para o lado social na economia. É um pouco difícil conciliar a sua visão com a do mundo empresarial, mais pragmática?
Mercado financeiro é muito focado no curto prazo. É um ambiente extremamente competitivo. Não é mais o meu dia a dia porque trabalho como consultora. Mas é um local com grau de ansiedade muito grande porque você não tem bola de cristal, mas precisa construir cenários o tempo todo.

Se você erra e o teu concorrente acerta… É uma vida dura ali, entendeu? Se errar um cenário e por causa disso o rendimento daquela aplicação financeira frustrar o cliente, você vai perdê-lo.

Todo o mundo quer olhar sua carteira no fim do dia e falar: "Nossa, foi bom investimento". E esquece o resto.

O mercado financeiro está ali analisando as questões que vão impactar os investimentos. Não está discutindo o racismo, não está discutindo questões identitárias. Não está porque não bate.

Você tem uma missão, que é fazer aquele aquela carteira de investimento render, tem que dar bons conselhos. E, sendo que ninguém tem bola de cristal, não é um ambiente fácil. Para mim, foi um ciclo que completou, eu fui buscar outras coisas.

Para os bancos, também?
As instituições financeiras, olhando de uma forma geral, cada vez mais têm olhar para outros temas. Por exemplo, carteiras relacionadas a projetos sustentáveis.

Há um tema que é hoje cada vez mais dos bancos centrais: como fatores climáticos podem gerar choques na economia. Para a economia, o mundo é cada vez mais complicado. Às vezes, se espera demais no mercado financeiro.


Raio-X

Zeina Latif, 56
Nascida em Campinas (SP), é economista formada pela USP (Universidade de São Paulo). Atualmente, é diretora da Gibraltar Consulting. Foi professora e pesquisadora antes de entrar no mercado financeiro em 2000. Ocupou o cargo de economista-chefe em diferentes bancos. O último deles foi a XP Investimentos. Foi secretária de Desenvolvimento Econômico do estado de São Paulo em 2022. É autora do livro "Nós do Brasil: Nossas Heranças e Nossas Escolhas", lançado pela Record

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