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Sem rigidez fiscal, Milei seria pato manco, diz economista que é amigo do argentino

Para Juan Carlos de Pablo, há 50 anos na política econômica, presidente não tem outros instrumentos além do choque

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Buenos Aires

Juan Carlos de Pablo, 80, tem uma visão privilegiada da agenda econômica argentina. Em cinco décadas acompanhando esse setor, ele invariavelmente teve contato com todos os governos que ocuparam a Casa Rosada ao longo do período.

Não é diferente com Javier Milei, 53, com quem tem uma relação de amizade há 25 anos. O hoje presidente já passou o Ano-Novo com a família de De Pablo, os dois já assistiram à Copa do Mundo juntos e durante um tempo almoçavam semanalmente um com o outro.

O economista Juan Carlos de Pablo em seu escritório, em Buenos Aires
O economista Juan Carlos de Pablo em seu escritório, em Buenos Aires - Divulgação

"Hoje nos vemos com certa frequência, não vou entrar em detalhes, e assistimos a ópera, algo que nós dois gostamos", diz ele à Folha em uma conversa em seu escritório, no 4º andar de um prédio antigo em uma das principais avenidas da cidade de Buenos Aires.

Colunista do jornal La Nación, De Pablo é um dos economistas mais respeitados do país entre diferentes espectros políticos.

Para ele, Milei não dispunha de outros instrumentos a não ser o expressivo ajuste fiscal que tem imposto na Argentina e o Estado está mais confiável do que há dois meses.

O presidente ainda pode desdenhar do Congresso, defende, porque suas reformas econômicas de curto prazo não dependem do Legislativo —algo que pode e deve mudar em breve.

Milei é o tipo de amigo que aceita críticas?
Depende de quem as faz, porque é muito paranoico. Mas ele sabe que eu não quero prejudicá-lo.

O Fundo Monetário Internacional fez elogios à política econômica do governo, disse que era um progresso impressionante.
A única coisa que me importa do fundo é se estamos discutindo dinheiro novo ou não. No mais, os comentários não me importam nada, os burocratas do fundo me importam menos ainda.

Há algum tempo, um funcionário do fundo recomendou ao presidente Milei aumentar a ajuda social. Eu disse: "Mas então dê o dinheiro". Ora, o Fundo Monetário tem coração... Estamos em um mundo muito louco.

Eu diria aos rapazes do fundo: "Façam o trabalho de vocês e deixem os argentinos fazerem o resto".

O fundo pode estar surpreso com a rigidez em matéria fiscal, que está relacionada com o fato muito elementar de que o presidente Milei tem poucos instrumentos. Não há dinheiro, e isso todo mundo entende. O governo argentino é mais confiável do que há 60 dias.

No geral, como o sr. avalia essa política econômica do governo?
É muito diferente, mas por causa das circunstâncias. Não há outros instrumentos. Se Milei afrouxa em tema de matéria fiscal e monetária, seria um pato manco. Ele sabe que tem uma chance de relaxar.

Propôs-se reduzir a taxa de inflação e está conseguindo. Era de 25,5% [dezembro], foi para 20,6% [janeiro], depois 13% [fevereiro], em março será provavelmente 10% ou 12%.

Alguns colegas perguntam quando virá a política de estabilização. Bem, registrou-se a queda da inflação, essa é a política. Não pode ser algo diferente.

Milei não tem deputados, não tem senadores. Hoje o presidente diz ao Congresso: "Se vocês votarem pela lei que enviei, melhor, e se não, não me importo, porque a política econômica de curto prazo não depende de vocês". Mas isso é muito fluido.

A longo prazo ele não terá de mostrar capacidade de diálogo?
Milei tem seu estilo. Diálogo não pode ser uma mesa onde se serve o café e começamos a falar. Diálogo na Argentina é: "Eu tenho este projeto de lei, você tem algo melhor? Se sim, nos entendemos".

A população tem sentido as medidas do chamado choque fiscal; a pobreza aumentou. Ainda assim, não houve massivos protestos nas ruas. O que está acontecendo?
Se formos ler os jornais de dois dias antes do Cordobazo [enorme mobilização popular em Córdoba, na Argentina, contra um regime autoritário em 1969], ou dois dias antes da queda da Dow Jones em 1929, não havia anúncio. Podemos estar tranquilos aqui e, daqui a dois dias, a Argentina pega fogo.

O que pode estar acontecendo: ou a população percebeu que estávamos desmoronando com Massa, ou tem dado certo pelo estilo de Milei. O presidente é austero, não usa helicóptero, vendeu os aviões. E a cada dia descobrem algo corrupto do governo anterior; é um escândalo.

Além disso, entenderam como fazer o dinheiro chegar diretamente às pessoas, eliminando os intermediários [organizações sociais]. Havia benefícios do Estado para os quais um intermediário te cobrava uma comissão. O governo disse não. Eliminou o intermediário. Assim, o intermediário faliu um pouco para fazer essas mobilizações, nas quais tem que colocar dinheiro para ônibus etc.

Também pesa o fato de que bloquear as ruas não é mais de graça. [O governo ameaça descontar o dia de trabalho de manifestantes.]

E do lado do mercado? Seus clientes, por exemplo, o que têm dito?
Meus clientes não são financeiros. Mas a música os encanta. Eles estão sentindo em termos de atividade.

Uma preocupação que eu compartilho é que muitas vezes ainda impera o chamado "custo argentino" [como o custo Brasil].

Você monta uma fábrica em tal lugar e, de repente, se depara com o prefeito colocando um imposto nos óculos que você tem e o governador colocando um imposto no batom que você usa e, além disso, um sindicato impedindo a saída dos caminhões da fábrica e um juiz impondo uma indenização de 80 vezes quando os preços subiram 30 vezes.

A pergunta óbvia é: o que o presidente do país pode fazer diante disso? Resposta: nada. Empresas podem falir sem precisar falir. Que alguém falha por causa do prefeito é um problema. Não depende da presidência.

Milei chegou a incluir em sua primeira versão da Lei Ómnibus a ideia de concentrar nele diversas funções do Legislativo por ao menos dois anos, podendo chegar a quatro. Governos anteriores já haviam feito isso, mas não com essa magnitude. O que pensou?
Isso não é normal, mas também não dou muita atenção. Argentina é um país onde alguém diz: "Vou à sua casa para te matar". Chega lá e está te esperando com uma medialuna. São modos de falar, é o exagero.

Não é preciso ser um gênio para perceber que o presidente está jogando e esperando que uma vitória nas eleições legislativas de outubro de 2025 vá permitir aumentar consideravelmente o número de parlamentares. Então, na segunda metade de seu mandato, ele vai poder implementar alguma reforma que agora não pode.

É também nesse período que ele diz que falará mais sobre dolarização.
Isso não tem nenhuma prioridade. Argentina é um país visceralmente bimonetário. Ao terminar esta entrevista, vamos ao café daqui embaixo e pedimos dois cafés. Quanto é? 2.000 pesos. Damos US$ 2, saímos, e obrigado. Dolarização quer apenas dizer terminar de tirar os pesos do meio. Não tem prioridade.

O governo tem feito demissões em massa de servidores públicos. Há protestos desse setor a todo momento.
Duplicaram o número de funcionários públicos nos últimos dez anos e ainda não melhoraram os serviços oferecidos. Os governos anteriores cometeram erros grosseiros.

A uma pessoa que viveu do Estado e agora não tem contrato, tem que buscar trabalho, sabe o que lhe digo? "Bem-vindo ao clube". Tudo isso em termos dos meios de comunicação é a grandiloquência, "o Estado capitalista", mas nada disso me interessa. Falemos de coisas concretas.

Houve dúvidas sobre se as diferenças ideológicas entre Lula e Milei poderiam frear o intercâmbio comercial importante entre os dois países. Qual a importância do Brasil?
Não ter boa relação com o Brasil é uma estupidez total. É nosso vizinho, é grande. Mas hoje se transcende o tema comercial e há quem dê muita importância para o campo das palavras. Se olharmos a agenda de trabalho do presidente Lula, a de Milei, a do papa, a de Joe Biden, não há tempo para ficar lembrando sobre o que você disse de mim. Se tivermos de sentar para falar, nós nos sentaremos pelos números.


Raio-X | Juan Carlos de Pablo, 80
Consultor econômico e colunista do jornal La Nación, é professor da Udesa, a Universidade San Andrés, e da Ucema, a Universidade do Centro de Estudios Macroeconómicos de Argentina. Graduado em economia pela PUC argentina em 1964, cursou doutorado e Harvard. Autor, entre outros, de "Argentina 2024-2027: O Desafio Econômico do Próximo Governo" (Sudamericana; sem versão em português).

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