Descrição de chapéu agências regulatórias

Só 0,5% do orçamento da Aneel foi para a fiscalização em 2023

Pessoas ligadas ao setor apontam número insuficiente de servidores, influência política e necessidade de atualização

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Brasília

Os problemas recorrentes de fornecimento de energia na cidade de São Paulo têm levantado discussões sobre a eficácia da regulação e da fiscalização do setor no Brasil, tarefas que nacionalmente ficam sob responsabilidade da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).

Levantamentos feitos ao longo dos últimos anos por órgãos como a CGU (Controladoria-Geral da União) apontam a necessidade de uma série de aperfeiçoamentos para que a capacidade do órgão seja fortalecida. Entre eles estão a melhora do orçamento, que em 2023 só destinou 0,5% dos recursos para fiscalização, e aumento no número de servidores –que vem caindo de forma contínua desde 2014, de 730 naquele ano para 558 em 2024.

Fachada Aneel
Sede da Agência Nacional de Energia Elétrica, em Brasília. - Divulgação

Um dos relatórios da CGU, feito em parceria com o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (Unops) em 2020 e intitulado "Projeto de Avaliação da Capacidade Institucional para a Regulação", destaca ainda o orçamento da Aneel como um dos entraves para a fiscalização de empresas e o correto funcionamento do serviço de teleatendimento aos consumidores.

Em 2023, a agência teve um orçamento de quase R$ 5,1 bilhões. Desse total, R$ 1,9 bilhão foi para a Conta de Desenvolvimento Energético, R$ 1,8 bilhão para a compensação de uso de recursos hídricos e R$ 1,1 bilhão para o pagamento da cota-parte da compensação pela usina de Itaipu.

Ou seja, 92% do total representam pagamentos que não contribuem diretamente para as atividades de regulação da Aneel

Dos R$ 329 milhões restantes, R$ 168 milhões vão para o pagamento dos salários dos servidores e R$ 54,9 milhões para gastos de administração da agência reguladora. Só R$ 23,6 milhões foram para a ação orçamentária de fiscalização do setor (ou 0,5% do total).

Enquanto isso, os autos de infração feitos pela agência têm caído desde 2021. Naquele ano foram 214, contra 157 em 2022 e 72 em 2023. A agência tem adotado uma política de negociação com as empresas, em vez da multa, por entender que o processo é menos conflituoso e mais eficaz.

Uma das apurações que a Aneel precisa fazer agora diz respeito à capacidade de fornecimento da Enel, responsável pela distribuição de energia na cidade de São Paulo, devido aos apagões recentes na capital paulista e ao "histórico de falhas e transgressões". A análise, encomendada pelo Ministério de Minas e Energia, pode levar à caducidade do atual contrato da empresa.

Desde 2018, a Enel foi autuada em mais de R$ 700 milhões em multas e compensações financeiras por falhas nos serviços, uma média de R$ 100 milhões em punições por ano.

"A empresa pagou parte das multas aplicadas pela agência reguladora neste período, totalizando até o momento cerca de R$ 55 milhões. Outras encontram-se em fase de recurso, seguindo trâmites normais do setor", diz nota da companhia.

Benedito Cruz Gomes, diretor da Associação dos Servidores da Agência Nacional de Energia Elétrica (Asea) e especialista em regulação da Aneel, afirma que a fiscalização e outras atividades da agência ficam comprometidos pelo que chama de sucateamento, em especial na carreira. Para ele, os baixos salários têm afastado servidores e prejudicado a transmissão interna de conhecimento técnico.

"Cada apagão que a gente vê, cada problema de energia, é frustrante na alma na gente porque a gente trabalha tanto e não está conseguindo [dar conta] por falta de pessoal", diz. "Às vezes tem problemas essenciais para o país que são tocados por um servidor. Se o cara sair ou ficar doente, fica paralisado o processo", afirma.

Ele diz que o corpo técnico é o maior patrimônio do órgão e que as agências reguladoras são grandes geradoras de recursos aos cofres públicos. "Estão tentando economizar onde não faz sentido. É uma economia que não é racional, não tem lógica", afirma.

Entre especialistas da área de energia, são levantadas ainda outras fragilidades na agência. É comentado em caráter reservado que a Aneel tem um corpo técnico forte, mas com uma cúpula contaminada por interesses políticos e empresariais.

Um ex-ministro ouvido pela Folha afirma que o processo de captura já começa no processo de escolha dos diretores, muitas vezes por indicação do Congresso, e que a situação se agrava porque o setor de energia é complexo e dominado por lobbies bem estruturados. Por isso, a avaliação é que o fundamental seria escolher diretores com competência técnica e que tenham como missão fundamental fazer as melhores escolhas para o consumidor.

Procurada, a Aneel não se manifestou até a publicação deste texto.

Joisa Dutra, diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV Ceri) e ex-diretora da Aneel, afirma que a agência funciona e que não tem evidências de que o papel dela esteja ligados aos problemas em São Paulo. Ela afirma que a Aneel tem um acordo em São Paulo para parte da fiscalização do setor com a Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo), vista por Dutra como um órgão com tradição e experiência.

Por outro lado, ela afirma que análises feitas por ela sobre o setor têm apontado a necessidade de revisão dos instrumentos legais de regulação. "Existe uma transformação em curso no setor, que tem se tornado mais complexo, com mais participantes e com aumento da frequência da severidade de eventos climáticos extremos. É claro que um setor mais complexo e sujeito a mais riscos precisa de atualização", diz.

"Uma regulação preparada para esses tempos que demandam resiliência. Tem que gerar incentivos para que as empresas invistam para tornarem mais robustas suas redes e sua infraestrutura para enfrentar esses eventos", afirma.

Raio-X da Aneel

  • O que é: Autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia, criada para regular o setor elétrico brasileiro (incluindo geração, transmissão, distribuição e comercialização).
  • Atribuições: Regular o setor, fiscalizar empresas diretamente ou mediante convênios com órgão estaduais, estabelecer tarifas, dirimir divergências entre empresas e consumidores, além de outorgar concessões, permissões e autorizações de empreendimentos de energia.
  • Criação: 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
  • Orçamento: R$ 5,1 bilhões (2023).
  • Servidores: 558.
  • Diretores (e quando terminam os mandatos): Sandoval Feitosa, diretor-geral (13 de agosto de 2027); Hélvio Neves Guerra (24 de maio de 2024), Ricardo Lavorato Tili (24 de maio de 2025); Fernando Luiz Mosna Ferreira da Silva (13 de agosto de 2026); Agnes Maria de Aragão da Costa (2 de dezembro de 2028)

SÉRIE FARÁ RAIO-X DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

A Folha lança série sobre a atuação das agências reguladoras federais. Serão 11 reportagens para traçar um raio-x dessas instituições na regulação e supervisão de setores como energia, petróleo, planos de saúde, vigilância sanitária, transportes, mineração, águas, aviação civil e áudio visual.

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