Jovens feridos e traumatizados pela guerra se multiplicam nos EUA
Nos EUA, a herança maldita da "guerra ao terror" não fica apenas nos cerca de 5.500 soldados mortos e mais de US$ 1 trilhão gasto até agora. Cada vez mais visíveis são também as fileiras de jovens que voltam dos combates com amputações, lesões cerebrais e transtornos de estresse pós-traumático. A extensão nos danos na geração mais recente de veteranos já é comparada muitas vezes aos índices do Vietnã.
Mas o estresse pós-traumático, conhecido nos EUA pela sigla PTSD (post traumatic stress disorder), só recentemente passou a ser enxergado pelas Forças Armadas como ferida de guerra, e não fraqueza psicológica. Mais de 400 mil veteranos recebem benefícios do governo por problemas relacionados à PTSD, e a Casa Branca acaba de facilitar os requisitos para que novos veteranos possam se unir ao programa.
Andrea Murta/Folhapress |
O sargento Horazio Castellana, 34, que recebe tratamento para estresse pós-traumático no hospital militar Walter Reed |
Para os soldados, o tema ainda é tabu. "Foi muito difícil admitir que eu tinha um problema, por causa do estigma que o PTSD tem no Exército", contou à Folha o sargento Horazio Castellana, 34, que recebe tratamento para o mal no hospital militar Walter Reed, em Washington. Com a orelha salpicada de pontinhos de acupuntura --que, segundo ele, ajudam a controlar a irritabilidade-- ele relata o estado em que voltou de dois destacamentos no Iraque: nervoso, explosivo, com insônia, pesadelos, tremores, dores de cabeça, palpitações e descargas de adrenalina.
Castellana conta que só após vários incidentes de brigas e comportamento anormal aceitou falar a respeito. Um deles foi quando viajou com a família para receber uma homenagem: "surtou" ao escutar um alarme de incêndio no meio da noite e vestiu o uniforme de combate no escuro, em silêncio. "Já estava pronto [para lutar] quando vi meus parentes, mudos de espanto, me olhando como se eu fosse louco."
O PTSD é uma síndrome de ansiedade que pode ser desenvolvida após uma experiência apavorante ou traumática, na qual a pessoa sofreu grave ferimento ou ameaça. É controlável com terapias e medicamentos, avaliados caso a caso, mas em boa parte das vezes não tem cura completa. Os sintomas incluem medos, pesadelos e memórias persistentes do trauma, problemas de sono, irritabilidade, sensação de afastamento da realidade, ansiedade, depressão e outros.
Andrea Murta/Folhapress |
Fachada do ultrarrestrito hospital militar Walter Reed, onde milhares de militares americanos passam por tratamento |
O Walter Reed, um centro médico militar de acesso bastante restrito em Washington que a reportagem conseguiu visitar no último mês, estima que 14% dos veteranos que chegam até lá tem PTSD severa. "[Mas] nem dá para quantificar o número total de casos", disse o coronel Van Coots, comandante do sistema de saúde local. "Todo soldado que volta da guerra tem a síndrome em algum nível. A questão é como lidam com ela."
Para além dos veteranos e suas famílias, a situação gera uma onda de riscos ampla em torno dos afetados. Boa parte dos combatentes tem de passar, por exemplo, por treinamento especial para voltar a dirigir pelas cidades, sem se comportar como se uma bomba pudesse explodir o veículo a qualquer momento.
E até tribunais especiais começam a se espalhar pelo país para veteranos sem ficha criminal que cometem pequenos crimes supostamente relacionados à dificuldades de se ajustar à vida civil depois de servir.
AMPUTADOS
O Walter Reed é altamente especializado também em outro dano cada vez mais comum das guerras: as amputações. Até 12 julho, a contagem dos amputados desde 2001 era de 1.024; destes, apenas 200 voltaram à ativa, dos quais 48 retornaram para destacamentos no Iraque e no Afeganistão.
Os corredores do hospital estão sempre tomados por veteranos com próteses, a maior parte para substituir uma perna perdida em alguma explosão.
Andrea Murta/Folhapress |
O militar Andrew Peden, 28, que sofreu amputação abaixo do joelho esquerdo após uma bomba arrancar seu pé no Afeganistão, em março passado |
Foi o que ocorreu com Andrew Peden, 28, que sofreu amputação abaixo do joelho esquerdo após uma bomba arrancar seu pé no Afeganistão, em março último. "Vários colegas da minha unidade tiveram amputações também", diz. Só 22% dos amputados sofre lesão em membros superiores. Mas há até quem tenha perdido as duas pernas e os dois braços. E mesmo assim muitos tentam voltar à ativa. Peden é um deles --quer tentar retornar em cargo de inteligência militar. Poucos conseguem.
Para os pacientes com lesão cerebral traumática (TBI, na sigla em inglês), o índice de retorno ao combate após o Walter Reed também é baixo. Segundo o diretor do programa de TBI do hospital, Louis French, isso ocorre porque eles recebem os pacientes mais graves. Desde 2001, mais de 2.000 deles passaram pelo local. Além de dores de cabeça, insônia e irritabilidade, sofrem problemas cognitivos de memória e atenção.
"Nosso objetivo é maximizar a readaptação à sociedade. Se o objetivo do veterano é voltar à guerra, podemos tentar. Mas só se for algo realista", diz.
As tentativas, ao menos por ali, se encerram em breve. O centro fecha as portas em setembro, transferindo serviços para dois outros hospitais da região. O hospital tentou, mas não conseguiu se livrar da mancha provocada pelo escândalo que o atingiu em 2007, quando foram reveladas deficiências do tratamento primário a veteranos --incluindo acomodações em prédios infestados de baratas e cheios de buracos.
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