Descrição de chapéu The New York Times

França monta posto avançado na África para tentar reduzir fluxo migratório

Funcionários do país europeu se instalaram no Níger para fazer triagem de solicitantes de asilo

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Candidatos a asilo na França percorrem corredores de complexo da ONU em Niamey, no Níger, antes de serem entrevistados
Candidatos a asilo na França percorrem corredores de complexo da ONU em Niamey, no Níger, antes de serem entrevistados - Dmitry Kostyukov/The New York Times
Adam Nossiter
Niamey (Níger) | The New York Times

Um conjunto modesto de escritórios pré-fabricados, em um complexo da ONU à beira de uma estrada de terra, abriga burocratas franceses que estão estendendo as fronteiras da França milhares de quilômetros África adentro, na esperança de evitar emigração indesejada.

Durante todo o dia, em um pátio gramado, os representantes franceses entrevistam solicitantes de asilo, em meio à realidade africana da qual estes buscam escapar —carroças puxadas por burros, desemprego, pobreza e, em alguns casos, perseguição política.

Se a resposta francesa ao pedido de asilo for positiva, o solicitante recebe uma passagem de avião para a França e evita o risco da jornada através do deserto e do Mediterrâneo em barcos precários, que levou milhões de emigrantes desesperados à Europa nos últimos anos, transformando a política e a sociedade.

"Estamos aqui para impedir que pessoas morram no Mediterrâneo", disse Sylvie Bergier-Diallo, a vice-chefe da missão francesa ao Níger.

Mas poucos dos solicitantes conseguem aprovação, e por isso a delegação francesa também está lá para enviar uma mensagem aos outros potenciais interessados em emigrar: fiquem em seus países e não corram o risco de uma viagem perigosa para reivindicar um asilo que pode terminar negado caso cheguem à França.

O posto avançado francês é parte de uma nova política de defesa avançada, na luta da Europa para conter a imigração africana. É uma parte pequena e relativamente benigna de uma estratégia mais ampla que, em outros aspectos, ameaça subverter os ideais humanitários europeus.

Depois de anos de abalos causados pela imigração descontrolada, a Europa decidiu contra-atacar. A Itália é suspeita de firmar acordos sigilosos com líderes de milícias na Líbia para controlar a rota de emigração. A União Europeia enviou delegações a capitais africanas, acenando com assistência e incentivos para que os líderes locais mantenham seus cidadãos em seus países. Agora é a vez da França.

"Há uma abordagem muito mais ativa para garantir que os imigrantes fiquem o mais longe possível da Europa, e isso em completo detrimento dos envolvidos", disse Philippe Dam, da organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch.

A missão francesa é "positiva", segundo ele, "mas pequena demais e chegou tarde demais".

Também é o avesso da moeda, no endurecimento da postura francesa quanto aos imigrantes, agora que o presidente Emmanuel Macron iniciou campanha, este mês, por uma nova lei de imigração que os críticos definem como draconiana e tem por objetivo devolver às suas terras muitas das pessoas que chegaram ao país.

Mesmo que alguns dos novos métodos europeus sejam questionáveis, os resultados são evidentes: no ano passado, pela primeira vez desde o início da crise, diversos anos atrás, o fluxo migratório se reverteu, de acordo com Giuseppe Loprete, diretor do escritório da agência da ONU para questões migratórias no Níger.

Cerca de 100 mil aspirantes a emigrar retornaram ao Níger vindos da Líbia, ante 60 mil que atravessaram o vasto e empobrecido país desértico a caminho da Europa.

Mercado de rua de Niamey, no Níger; usado como rota rumo ao Mediterrâneo, país reduziu para um terço número de imigrantes
Mercado de rua de Niamey, no Níger; usado como rota rumo ao Mediterrâneo, país reduziu para um terço número de imigrantes - Dmitry Kostyukov/The New York Times

MUDANÇAS

Como polo da imigração oeste-africana, o Níger há muito sofre pressão da Europa para restringir o fluxo de emigrantes pelo país. E algo mudou.

As estações rodoviárias em Niamey, antes repletas de oeste-africanos tentando chegar a Agadez, a última cidade antes da fronteira com a Líbia, estão vazias. A polícia verifica documentos de identidade rigorosamente.

O esforço francês para filtrar os aspirantes a asilo é pequeno demais para que se possa considerá-lo responsável pela queda, e tampouco há expectativa de que ele tenha grande efeito sobre o fluxo migratório mais amplo.

A missão começou a operar depois que a queda já havia se tornado perceptível. Apenas algumas das missões encarregadas de entrevistar solicitantes de asilo foram iniciadas desde que Macron anunciou sua nova política, na metade do ano passado, e elas permanecem na área de destino por cerca de uma semana por vez.

Por mais modesto que seja, no entanto, o esforço francês ajudou a virar o jogo, ao transferir o processamento de alguns pedidos de asilo da Europa para a África, porque muitos dos solicitantes que já estão na Europa e têm negado seus pedidos de asilo tendem a permanecer lá ilegalmente.

Para Macron, um dos principais objetivos é acalmar as pressões políticas da extrema direita em seu país, que vêm crescendo por conta da crise com os imigrantes. Os franceses esperam que a visibilidade maior de um sistema formal de processamento avançado de asilo desencoraje as pessoas cujos motivos para solicitá-lo são tênues de arriscar suas vidas ao recorrer a contrabandistas para atravessar fronteiras ilegalmente.

O processo também pretende enviar uma mensagem potencialmente importante: as pessoas que de fato estão sendo perseguidas têm oportunidade de receber salvo-conduto para a Europa.

"Politicamente, é muito importante", disse Loprete. "Mas em termos numéricos, não é um grande esforço".

Em uma semana recente, 85 pessoas foram entrevistas pelos quatro funcionários da agência francesa de atendimento a refugiados, a Ofpra, e depois devolvidas aos seus locais de origem.

A seletividade do processo está em linha com a determinação de Macron de impedir a entrada de imigrantes econômicos. "Não podemos acolher a todos", ele declarou em seu discurso de Ano-Novo.

Por outro lado, "temos de acolher os homens e mulheres que estão fugindo de seus países por estarem sob ameaça", disse Macron. Eles têm "direito de asilo", afirmou o  presidente francês.

Os críticos do plano dizem que ele representa apenas um esforço simbólico, e que o objetivo real é manter os potenciais emigrantes distantes da França.

"A política de Macron é separar os emigrantes e os refugiados, mas como isso é possível? Qual é o princípio ético por trás dessa escolha?", disse Mauro Armanino, padre italiano da catedral de Niamey, que trabalha há muito tempo com os emigrantes africanos. "É uma política sem coração".

Ainda assim, os franceses foram os primeiros a empreender esse tipo de esforço de contato avançado, trabalhando em estreita cooperação com as Nações Unidas, no composto que abriga sua agência de assistência aos refugiados em Niamey.

A Organização Internacional para Migrações faz uma primeira seleção para os franceses, na Líbia, vizinha do Níger ao norte, onde redes de tráfico de pessoas prosperaram devido ao colapso caótico do país.

Os representantes da ONU têm autorização para ingressar nos campos de refugiados operados pelo governo do Níger em busca de potenciais casos de asilo —principalmente eritreus e somalis cuja fuga à perseguição política e ao caos pode qualificá-los para proteção. Com base nas listas fornecidas pela ONU, os franceses decidem quem será entrevistado.

"A ideia é proteger as pessoas que têm direito a asilo", disse Pascal Brice, diretor da Ofpra, a agência francesa de assistência a refugiados. "E contornar os horrores da Líbia e do Mediterrâneo".

"É limitado", reconheceu Brice. "Mas o presidente disse que deseja reduzir o número de travessias marítimas", ele acrescentou, se referindo a Macron.

Bénédicte Jeannerod, que dirige o escritório francês da Human Rights Watch, critica menos o programa em si do que sua escala. "Eu disse a Pascal Brice que, se o programa funciona, deve ser ampliado", ele afirmou.

De cabeça coberta, candidata a asilo na França é entrevistada por funcionário da agência francesa de refugiados em Niamey, no Níger
De cabeça coberta, candidata a asilo na França é entrevistada por funcionário da agência francesa de refugiados em Niamey, no Níger - Dmitry Kostyukov/The New York Times

DIFICULDADES

Mas as potenciais dificuldades de uma expansão do programa ficaram evidentes durante um dia de entrevistas, no calor escaldante do centro da ONU em Niamey.

Em uma recente noite de sábado, 136 eritreus e somalis foram transportados de avião a Niamey pela ONU, todos potenciais candidatos a entrevistas para asilo na França.

As dezenas de solicitantes de asilo que já estavam presentes esperavam pensativamente, sentados em bancos e parecendo resignados, sem demonstrar reação perceptível àquilo que lhes disse a vice-chefe da missão francesa.

"Se vocês forem escolhidos, logo estarão na França", disse Berger-Diallo, pronunciando as palavras lentamente e com clareza. "E isso nos alegra".

De fato, os refugiados aprovados recebem recompensas enormes: uma passagem de avião gratuita para a França. Moradia grátis, documentos de residência sem complicações e aulas gratuitas de francês.

Os agentes franceses, rígidos e formais durante as entrevistas, que podem durar mais de uma hora, buscavam informações detalhadas sobre os elos familiares dos refugiados, sem procurar a estabelecer a narrativa de sua fuga e sofrimento.

A ideia é "estabelecer o contexto familiar", em um esforço para confirmar a autenticidade das origens do refugiado, disse Lucie, uma das agentes francesas. (Sensíveis quanto a questões de segurança, as autoridades francesas pediram que os sobrenomes de seus agentes e dos refugiados não fossem publicados.)

Shewitt, 26, uma mulher eritreia pequenina e de óculos, foi perguntada se telefonava para sua família, e sobre o que conversavam.

"Só falamos sobre minha saúde", ela disse. "Nunca lhes digo onde estou".

Mariam, 27, disse à agente francesa que foi estuprada e sofreu ostracismo em sua aldeia, e que temia voltar porque "as pessoas que me estupraram continuam lá".

"Podem me estuprar de novo", disse Mariam, que nasceu na Somália, é analfabeta e trabalhava como tropeira.

Vestida com lenços e o véu islâmico uma das candidatas a asilo na França esconde o rosto após ser entrevistada em Niamey
Vestida com lenços e o véu islâmico uma das candidatas a asilo na França esconde o rosto após ser entrevistada em Niamey - Dmitry Kostyukov/The New York Times

Mesmo que ela encontre segurança na França, integrá-la na sociedade seria um desafio. Mariam nunca estudou, e pareceu desconcertada quanto a agente pediu que removesse o lenço que encobria seus cabelos.

A agente, Emoline, disse gentilmente a ela que o uso do lenço é proibido nas escolas e instituições públicas francesas, falando em inglês por meio de um intérprete.

Havia também o caso de Welella, 18, uma garota eritreia que, antes de ser resgatada na vizinha Líbia, havia passado algum tempo em um campo de refugiados no Sudão, onde sofreu "punições", em suas palavras.

O pai dela é soldado, e todos os seus irmãos e irmãs foram convocados para o serviço militar obrigatório na Eritreia. Ela corria o mesmo risco.

"Por que o serviço militar é obrigatório na Eritreia?", perguntou Lucie à menina, sentada diante dela.

"Não sei", respondeu Welella, mecanicamente.

Ela planejou sua fuga por muito tempo. "Um dia consegui", disse, com simplicidade.

"O que aconteceria com você caso voltasse à Eritreia?", perguntou Lucie.

"Sofri muito para deixar a Eritreia", disse Welella, lentamente. "Se eu voltar, acabam comigo".

Ela foi interrogada muitas vezes sobre os nomes de seus irmãos na Eritreia, e por que havia selecionado uma determinada cidade como destino.

Depois de quase duas horas de interrogatório, um indício da decisão da agente francesa enfim chegou - em inglês. A mensagem foi burocrática, mas clara, e indicava que Welella estava mais perto da França.

"Você terá o direito de entrar na França legalmente", disse Lucie. "Terá visto de resistência, receberá acomodações, terá direito de trabalhar..."

Welella sorriu, timidamente.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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