Como os adolescentes de Parkland se tornaram vilões na internet da direita

Ativistas pró-Trump e pró-armas espalharam notícias falsas sobre sobreviventes da tragédia

Grupo de alunos da escola Marjory Stoneman Douglas gritam em um palco durante a Marcha por Nossas Vidas, protesto que reuniu milhares de pessoas em Washington
Alunos da escola Marjory Stoneman Douglas, onde ocorreu o massacre em Parkland, participam da Marcha por Nossas Vidas em Washington em 24 de março - Chip Somodevilla - 24.mar.2018/Getty Images/AFP
Abby Ohlheiser
Washington Post

Menos de uma semana depois que 17 pessoas morreram em Parkland, Flórida, o provocador direitista Dinesh D'Souza começou a ridicularizar alguns dos adolescentes que sobreviveram ao massacre.

"Pior coisa que aconteceu com eles desde que seus pais mandaram que arrumassem empregos no verão", ele tuitou em 20 de fevereiro, comentando uma foto que mostrava sobreviventes do ataque em Parkland chorando quando legisladores estaduais rejeitaram um projeto de lei que proibiria a venda de armas longas

Outra mensagem de D'Souza dizia "adultos um, moleques zero". Combinadas, as duas publicações foram curtidas 25 mil vezes e tiveram 8.000 compartilhamentos.

Agora, passadas cinco semanas do ataque à escola de Parkland, as mensagens de D'Souza parecem até discretas. Emma González, David Hogg e os demais adolescentes de Parkland que lutam pelo controle de armas se tornaram heróis virais para os progressistas, e vilões para a internet da direita, que os considera como alvos legítimos para as zombarias e ataques que essa corrente política usualmente reserva a inimigos adultos.

E essa infâmia conquistou público ainda maior no final de semana passada, no momento da manifestação Marcha pelas Nossas Vidas, com uma foto adulterada que supostamente mostrava González rasgando a Constituição dos Estados Unidos (ela na verdade rasgou um alvo de tiro).

A imagem ganhou circulação viral modesta nas porções da internet que apoiam Trump, e seu uso foi defendido como "sátira" pelas pessoas que a postaram.

Eis um retrospecto de como os adolescentes de Parkland se tornaram tamanho alvo:

Dia 1: teorias da conspiração

Os primeiros a tomarem como alvo os alunos da escola de Parkland foram os proponentes de teorias de conspiração. Quando um ataque como o de Parkland ocorre, eles saem já desde o primeiro instante em busca de sinais de que o acontecido não é o que parece —de que o ataque na verdade foi encenado e/ou executado por motivos políticos.

Os teóricos da conspiração seguem o que Whitney Phillips, que estuda os métodos usados para intimidação online, define como "roteiro de tragédia". A elite quer privar o povo do seu direito ao porte de armas, usa homicídios em massa para fazê-lo, e eis os truques empregados para manipular o público. Qualquer coisa de irregular se torna combustível para teorias de conspiração.

Um usuário anônimo do 8chan usou esse serviço de mensagem, que abriga pessoas com visões extremas, para pedir que os membros do fórum procurassem por "atores de crise", e isso apenas 47 minutos depois do início do ataque.

E se serviços de chat e fóruns marginais como o 8chan, 4chan e alguns dos subreddits do Reddit são os pontos de encontro nos quais os teóricos da conspiração coordenam suas ações, o Twitter é o lugar no qual as teorias de conspiração —e a intimidação que as acompanham chegam ao público.

Em poucas horas, usuários anônimos do Twitter já estavam acusando os estudantes, que tuitaram mensagens de dentro de suas salas de aula durante o ataque, de fazerem parte da conspiração.

Uma sequência de mensagens no Twitter, surgida pouco depois da meia-noite no dia do ataque, descrevia ter informações "explosivas" sobre Parkland. @Magapill (conta cujos tuites foram reproduzidos elogiosamente pelo presidente Donald Trump) postou um link com uma entrevista em vídeo com um estudante; o vídeo se tornou base para uma teoria de conspiração, já desmentida, sobre Parkland. Os tuítes dessa sequência de mensagens foram reproduzidos mais de três mil vezes.

Tudo isso aconteceu antes que os alunos de Parkland que lutam pelo controle de armas começassem a ganhar importância viral. Quando eles emergiram como ativistas, a campanha para desacreditar e expor como fraudes os estudantes explodiu.

Semana 2: A internet da direita reage

"EXPOSTO: Pai de David Hogg, sobrevivente de ataque a escola tornado ativista, [diz] ao FBI, [que ele] parece ter sido decorado mensagens anti-Trump", afirmava uma manchete do site Gateway Pundit.

O artigo foi um dos diversos a surgirem em publicações de extrema-direita no primeiro final de semana depois do ataque. Lucian Wintrich, um dos redatores do Gateway Pundit, chamou os alunos de Parkland de "escrotinhos".

Hogg e Emma González haviam encontrado suas vozes. Em entrevista à rede de notícias CNN, os dois apelaram pelo fim da Associação Nacional do Rifle (NRA), o lobby pró-armas dos EUA.

A entrevista foi veiculada na segunda-feira após o ataque. Na terça, um assessor de Shawn Harrison, deputado estadual republicano na Flórida, foi demitido após declarar a um jornalista que Hogg e González "não eram estudantes...e sim atores".

Como prova, o assessor enviou ao repórter um dos diversos vídeos postados no YouTube para promover essa teoria de conspiração.

Mesmo um antigo deputado federal, Jack Kingston, aderiu às acusações no Twitter: "É mesmo? Estudantes estão planejando uma manifestação nacional? Não ativistas de esquerda usando garotos de 17 anos na esteira de uma tragédia horrível?"

A teoria da conspiração se difundiu rapidamente, e os algoritmos perceberam. Um vídeo que acusava Hogg de ser ator logo chegou ao primeiro posto da lista de vídeos recomendados do YouTube.

Semana 3: Briga com empresas de redes sociais

No começo de março, a internet da conspiração —e alguns de seus aliados entre os partidários de Trump transformaram as teorias de conspiração sobre os alunos de Parkland em uma cruzada contra o que viam como censura pelas plataformas mais importantes do Vale do Silício.

Depois que um vídeo de conspiração entrou para a lista de vídeos recomendados do YouTube, a plataforma começou a reprimir os vídeos e criadores que estavam promovendo a falsa informação de que os alunos de Parkland eram atores contratados ou de que estavam lendo roteiros escritos por defensores do controle de armas. E foi aí que Alex Jones apareceu.

O principal canal de Jones no YouTube tem mais de dois milhões de assinantes, e ele postou diversos vídeos sobre Hogg, com títulos como "David Hogg esquece seu diálogo em entrevista na TV", nas semanas posteriores ao ataque.

Depois que a CNN reportou que o canal de Jones estava a duas advertências de ser excluído do YouTube, por violar as normas de uso da plataforma, ele começou a falar sobre censura.

Disse que seu canal estava para ser excluído (não foi); Jones criou uma campanha para arrecadar verbas que usaria na luta contra seus inimigos. Isso se tornou tema de noticiário por uma semana, e capturou as atenções tanto dos leitores do [site noticioso de extrema-direita] Infowars quanto de seus oponentes.

Marcha pelas Nossas Vidas: memes na rede

Na véspera da manifestação Marcha pelas Nossas Vidas, a NRA divulgou uma mensagem para os estudantes de Parkland que a organizaram: "Ninguém saberia seus nomes" se um atirador não tivesse matado 17 pessoas na escola em que eles estudam, afirmou um apresentador na NRATV.

Os adolescentes de Parkland, ao se envolverem com uma questão polarizadora como o controle de armas, certamente antecipavam encontrar oposição —o que inclui oposição de outros estudantes sobreviventes do massacre em sua escola, mais conservadores.

Mas os ataques fortemente pessoais e as teorias de conspiração envolvendo Hoggs, González e seus demais colegas ativistas deixaram de ser assunto só de sites extremistas e atingiram um público mais amplo.

E depois que a imagem de Emma González rasgando a Constituição ganhou circulação viral, a página de campanha do deputado federal Steve King, republicano do Iowa, compartilhou um meme que zombava dela. O post fala sobre a pequena bandeira cubana costurada no casaco que ela usou durante a manifestação.

"Essa é sua cara quando você ostenta sua ascendência cubana mas não fala espanhol, e ignora o fato de que seus ancestrais fugiram da ilha quando a ditadura fez de Cuba uma prisão, retirando todas as armas, e portanto o direito de autodefesa, de seus cidadãos".

Um dia depois que começou a circular a imagem adulterada sobre González, o blog conservador Redstate publicou —e posteriormente atualizou— um artigo que falsamente acusava Hogg de não estar na escola durante o ataque.

"Alguma coisa não bate", quanto ao paradeiro de Hogg durante o ataque, o artigo original afirmava, apontando para um trecho de um documentário que está em preparação e mostra o estudante voltando para casa para apanhar sua câmera e em seguida retornar à escola para entrevistar alunos.

"Não é possível que ele estivesse na sala de aula e também em casa, a cinco quilômetros da escola", o artigo concluía. "Uma dessas coisas é mentira. Hogg deveria se explicar, e rápido",

Mas toda a premissa do artigo do Redstate era improcedente. Depois que o texto foi publicado, o Redstate postou duas atualizações, acima da reportagem, esclarecendo que os acontecimentos descritos no post como incompatíveis na verdade haviam acontecido separadamente, com intervalo de algumas horas. Hogg certamente estava na escola quando do ataque, e mais tarde foi para casa e voltou à escola naquela noite, para entrevistar seus colegas reunidos diante dela.

Mas àquela altura a história já estava circulando na internet da direita, compartilhada por pessoas que desejavam que ela fosse verdade.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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