Descrição de chapéu terrorismo estado islâmico

Voluntários ainda resgatam corpos sob pilhas de escombros em Mossul

Cidade iraquiana devastada pelo Estado Islâmico busca seus mortos sete meses após conflito

Do alto de uma pilha de entulho, homem mostra o que sobrou da mesquita de Jonas, um dos prédios históricos de Mossul destruídos pelo Estado Islâmico
Do alto de uma pilha de entulho, homem mostra o que sobrou da mesquita de Jonas, um dos prédios históricos de Mossul destruídos pelo Estado Islâmico - Carla Aranha/Folhapress
Carla Aranha
Mossul

O professor de árabe Farhan Suliman, 29, tem passado parte de seus finais de semana em Mossul de um jeito diferente. Há alguns meses, ele reúne amigos, todos voluntários, para uma missão espinhosa. Eles percorrem as ruas da cidade iraquiana à procura de corpos.

Mais de seis meses depois do fim da guerra pela expulsão da facção terrorista Estado Islâmico, restam centenas de cadáveres sob os escombros. "A Defesa Civil não tem dado conta", diz Suliman.

Muitas vezes, as equipes levam um dia inteiro para resgatar apenas um corpo. "É preciso puxar com cuidado, para não provocar um desabamento", afirma.

A batalha pela retomada de Mossul, segunda maior cidade do Iraque, deixou mais de 11 mil mortos e destruiu ao menos 60 mil moradias, segundo estimativas da ONU.

A guerra, que durou nove meses e foi travada entre os extremistas e as forças iraquianas, com apoio da coalizão liderada pelos EUA, foi encerrada em julho passado.

O conflito deixou um rastro de devastação. Só no lado oeste, mais impactado pelas batalhas, 20 mil prédios foram seriamente danificados. Muitos são hoje escombros.

"São 10 milhões de toneladas de entulho, o que equivale a três pirâmides do Egito", diz Lise Grande, chefe do programa das Nações Unidas para a reconstrução do Iraque.

A ONU calcula que serão necessários bilhões de dólares somente para reconstruir a infraestrutura básica, de eletricidade, pavimentação e tratamento da água.

Menino faz selfie com vista para Mossul no topo da montanha de ruínas da mesquita de Jonas, destruída pela facção Estado Islâmico
Menino faz selfie com vista para Mossul no topo da montanha de ruínas da mesquita de Jonas, destruída pela facção Estado Islâmico - Carla Aranha/Folhapress

MINAS

Até o final do ano passado, pouca gente se atrevia a dar um passo em boa parte do lado oeste de Mossul, antigo quartel-general dos extremistas, que dominaram a cidade por quase três anos. O EI espalhou explosivos e minas terrestres no local para retardar o avanço das tropas.

Em dezembro, equipes especializadas da ONU e do governo local deram início ao processo de retirada desses dispositivos. O trabalho, no entanto, deverá durar anos.

"O grau de periculosidade é intenso e precisamos operar com muito cuidado", diz Pehr Lodhammar, gerente sênior da UNMAS, agência da ONU para retirada de minas.

Até agora, já foram desativados quase 27 mil explosivos. "Esse é o primeiro passo para que os moradores possam voltar e retomar suas vidas", afirma Lodhammar.

Cerca de 1 milhão de pessoas deixaram a cidade, fugindo da guerra, das quais 200 mil retornaram. O restante vive em campos de refugiados nas proximidades ou na casa de parentes na cidade.

Na zona oeste, 60 mil moradores estão de volta e milhares aguardam o aval das autoridades. Um dos maiores empecilhos são os entulhos e restos humanos.

Apenas na semana retrasada, as equipes encarregadas de limpar o entulho encontraram centenas de corpos. "Geralmente, eles não estão inteiros, então é difícil identificar a vítima", diz Suliman. "Quando podemos, chamamos a família e fazemos um enterro", afirma.

Em janeiro, a Defesa Civil afirmou ter achado 2.585 corpos de civis. Em fevereiro, a operação foi suspensa. O motivo alegado é que não há mais restos humanos a serem retirados. Segundo moradores, faltam equipamentos e recursos para os resgates.

"Mas os corpos não podem ficar lá, por isso as pessoas estão se reunindo para fazer esse trabalho", diz Suliman.

Prédios destruídos da Cidade Velha de Mossul, um dos bastiões do Estado Islâmico, vistos da outra margem do rio Tigre, que corta a cidade iraquiana
Prédios destruídos da Cidade Velha de Mossul, um dos bastiões do Estado Islâmico, vistos da outra margem do rio Tigre, que corta a cidade iraquiana - Carla Aranha/Folhapress

CRIANÇAS

Muitos restos são de crianças. Um deles é o do menino Umham, 3, cuja casa desabou após um bombardeio.

Seu corpo foi tirado dos escombros por voluntários em janeiro. O pouco que se sabe sobre sua história foi contado pelos vizinhos: os outros dois irmãos de Umham morreram no hospital, e seus pais moram hoje em um campo de refugiados perto de Mossul.

"Toda vez que ligávamos para o pai dos garotos, ele começava a chorar muito, então não conseguimos saber muita coisa", diz Suliman.

A guerra em Mossul é considerada a batalha urbana mais letal desde a Segunda Guerra (1939-45). "Dificilmente será possível contar o número total de mortos", diz o historiador Omar Muhammed, de 31 anos, de Mossul.

Protegido pelo anonimato, ele criou o blog Mosul Eye, para contar o dia a dia cidade sob o Estado Islâmico.

"Agora, mesmo ainda em luto, as pessoas estão dando os primeiros passos para recuperar suas vidas", afirma.

O farmacêutico Ayoob Thanoon, 27, reergueu a casa da família com familiares e participa de grupos de voluntários que, com pás e carrinhos, ajudam a recolher escombros. Para tornar a tarefa menos monótona, músicos da cidade às vezes aparecem para animar o ambiente.

"Cada um colabora como pode", diz o professor de música Khaled Walled, 27. "Temos que trazer a vida de volta." Há planos também de reconstruir sítios históricos e religiosos, como a Mesquita de Jonas, que guarda resquícios de antigas civilizações.

Nos bairros menos prejudicados pela guerra, a infraestrutura está sendo recuperada mais velozmente.

As pontes sobre o rio Tigre, que divide a cidade em duas, foram reconstruídas. As escolas e a universidade também voltaram a funcionar.

"A destruição foi muito grande, mas existe também uma forte vontade de vencer os fantasmas e seguir", afirma Walled.


MOSSUL, ANO ZERO Queda e reconstrução

dez.2012 Sunitas começam a protestar na província de Al Anbar por mais poder e autonomia contra o então premiê, o xiita Nouri al-Maliki; no ano seguinte os atos se alastram por outras áreas sunitas

dez.2013 A prisão de um deputado sunita leva a conflito entre milícias sunitas e o Exército; insurgentes dominam cidades como Fallujah e Ramadi e alguns se associam a extremistas ligados à Al Qaeda, como o chamado Estado Islâmico do Iraque e do Levante

jun.2014 Com acesso a armas e território na Síria, a facção reteve Fallujah e Ramadi e, mesmo em desvantagem, capturou Mossul em seis dias; na sequência, o líder da milícia, Abu Bakr al-Baghdadi, a desligou da Al Qaeda, passando a denominá-la Estado Islâmico

jan.2015 Com apoio de bombardeiros da coalizão liderada pelos EUA, os peshmergas (combatentes curdos) começaram a atacar os extremistas; recuperaram vilarejos, mas não Mossul após um ano de ofensiva

jul.2015 Com a recomposição do Exército, a articulação de milícias xiitas e os ataques aéreos da coalizão dos EUA, o governo iraquiano recupera o controle de Al Anbar, Fallujah e Ramadi

mar.2016 Forças leais ao governo, curdos e a coalizão estrangeira se aliaram para sufocar o EI, tomando áreas da fronteira com a Síria; sem comunicação e financiamento, a facção ficou enfraquecida

out.2016 O primeiro-ministro Haider al-Abadi lança a Batalha de Mossul, juntando Exército, curdos, xiitas ligados ao Irã e ao Hizbullah, além da coalizão dos EUA; após nove meses de ofensiva e ao menos 11 mil mortos, a cidade é libertada do Estado Islâmico

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