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Coreia do Norte

EUA e China têm chance única em cúpula com Coreia do Norte

Encontro de Singapura pode formar base para nova era entre as duas potências

Richard Haass
Nova York | Project Syndicate

Não é evidente imediatamente, mas a Coreia do Norte tem o potencial de ser a melhor coisa a acontecer na relação entre EUA e China desde a queda da União Soviética. Quer esse potencial se realize, quer não, não é difícil entender por que ele existe.

A relação sino-americana atual nasceu quase meio século atrás, baseada na preocupação compartilhada com a ameaça que a União Soviética representava aos dois países. Foi um exemplo clássico da velha máxima de “o inimigo de meu inimigo é meu amigo”.

Esse relacionamento poderia sobreviver a quase tudo —exceto ao desaparecimento do inimigo comum. E foi exatamente isso o que aconteceu com o fim da Guerra Fria, em 1989, e o colapso da URSS, no início de 1992.

Mas o relacionamento EUA-China demonstrou resiliência surpreendente, encontrando uma nova razão de ser: a interdependência econômica. 

Os americanos se alegravam em comprar volumes imensos de  manufaturados chineses relativamente baratos. Essa demanda, por sua vez, garantiu empregos a dezenas de milhões de chineses que deixaram regiões agrícolas pobres para ir para cidades novas ou em rápido crescimento.

Os EUA, por sua parte, estavam fascinados com o potencial de exportar para o imenso mercado chinês, sedento pelos produtos mais avançados que ele almejava, mas ainda não era capaz de produzir. 

Muitos nos EUA também acreditavam que o comércio daria à China um interesse maior em preservar a ordem internacional existente, elevando as chances de sua ascensão à condição de grande potência ser pacífica. 

A esperança relacionada era que o crescimento econômico fosse seguido por reformas políticas.

Presidente americano, Donald Trump, chega em base aérea em Singapura, país onde irá se reunir com o líder norte-coreano Kim Jong Un
Presidente americano, Donald Trump, chega em base aérea em Singapura, país onde irá se reunir com o líder norte-coreano Kim Jong Un - Saul Loeb/AFP

Previsões como esses levaram à decisão dos EUA de apoiar o ingresso da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001.

Hoje, anos mais tarde, os laços econômicos que formavam a base do relacionamento sino-americano vêm se convertendo mais e mais em fonte de atritos que colocam esse relacionamento em risco. 

A China exporta aos EUA muito mais do que ela importa, contribuindo para o desaparecimento de milhões de empregos, e não abriu seu mercado conforme se esperava nem implementou as reformas prometidas. 

Além disso, o governo chinês continua a subsidiar empresas estatais e ou rouba bens intelectuais ou exige sua transferência para sócios chineses como precondição para o acesso de empresas estrangeiras a seu mercado interno.

Essa crítica à China é amplamente aceita nos EUA tanto por republicanos quanto por democratas, mesmo que eles discordem de muitas das soluções propostas pela administração Trump. 

E as críticas não se limitam a questões econômicas. Os EUA assistem com preocupação crescente à assertividade chinesa cada vez maior fora de suas fronteiras. 

A iniciativa Belt and Road (a nova rota da seda) parece ser não tanto um programa de desenvolvimento quanto uma ferramenta geoeconômica para ampliar a influência chinesa. A expansão de seu domínio no mar do Sul da China e sua criação de bases militares ali são vistas em toda a região como uma provocação.

O desenvolvimento político interno da China também decepciona os observadores. 

A abolição dos limites ao mandato presidencial e a concentração de poder nas mãos do líder Xi Jinping foram uma surpresa desagradável para muitos. A repressão da dissensão (frequentemente disfarçada como sendo parte da campanha de combate à corrupção lançada no governo de Xi), da sociedade civil e das minorias uigur e tibetana no oeste da China também geram preocupação. 

O resultado de tudo isso é que hoje é comum que documentos governamentais oficiais dos Estados Unidos coloquem a China no mesmo saco que a Rússia e falem dela como rival estratégica.

Tudo isso nos conduz de volta à Coreia do Norte, cujas armas nucleares e mísseis de longo alcance são vistos pela China como ameaça genuína —não ao próprio país, mas a seus interesses regionais. 

A China não deseja um conflito que possa dificultar o comércio regional e levar milhões de refugiados a atravessar suas fronteiras, entrando em seu território. 

Ela teme que uma guerra desse tipo possa levar a uma Coreia unificada e firmemente dentro da órbita estratégica dos EUA. Ela tampouco quer que Japão e outros países vizinhos reavaliem sua aversão de longa data a desenvolver armas nucleares. 

Além disso, o governo chinês é contra o sistema de defesa antimísseis da Coreia do Sul (adquirido dos EUA em resposta aos disparos de mísseis norte-coreanos), que a China enxerga como ameaça à sua própria capacidade de dissuasão nuclear.

Os EUA não querem viver sob a sombra de uma Coreia do Norte que possui mísseis de longo alcance capazes de disparar armas nucleares contra cidades americanas. Ao mesmo tempo, os EUA não querem uma guerra que teria custo muito alto segundo qualquer critério.

Assim, China e EUA têm um interesse comum em fazer a diplomacia funcionar e assegurar o êxito de qualquer cúpula EUA-Coreia do Norte. 

A questão para a China é se ela está disposta a colocar pressão suficiente sobre a Coreia do Norte para fazê-la aceitar limitações substanciais a seus programas nuclear e de mísseis. A questão para os EUA é se o país estará disposto a aceitar um resultado diplomático que estabilize a situação nuclear na península Coreana, mas não a resolva no futuro previsível.
Uma cúpula EUA-Coreia do Norte que evitasse uma crise que não beneficiaria nem aos EUA nem à China lembraria às populações dos dois países o valor da cooperação sino-americana. 
E o precedente de as duas grandes potências mundiais cooperando para resolver um problema com implicações regionais e globais poderia formar a base para a próxima era de um relacionamento bilateral que, mais que qualquer outro, vai definir a política internacional neste século.

Tradução de Clara Allain

Richard Haass é presidente do Council on Foreign Relations e ex-diretor do Departamento de Estado dos EUA (2001-2003)

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