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Jornalismo deve evitar 'normalizar' posturas 'ultrajantes', diz editor

Para Kyle Pope, de Columbia, 'comportamento extraordinário' de Bolsonaro e Trump é desafio à imprensa

Nelson de Sá
São Paulo

Editor da Columbia Journalism Review, principal publicação sobre mídia nos EUA, Kyle Pope afirma, em relação à cobertura de Jair Bolsonaro e Donald Trump, que "a história nos diz que os jornalistas precisam se precaver contra a normalização do comportamento extraordinário".

Ambos representam "um desafio para os jornalistas", por exemplo, quanto à forma de noticiar suas declarações. Ele expressou o temor de que "a retórica de Trump e sua falta de respeito pelas instituições democráticas, como a imprensa, estejam se espalhando pelo mundo".

Pope participa na segunda (15) do 2º Seminário Internacional de Jornalismo, promovido em São Paulo pela ESPM e pela Universidade Columbia (EUA). Ao longo do dia, na rua Dr. Álvaro Alvim, 123, na Vila Mariana, participam também, entre outros, os jornalistas Fábio Takahashi, Sabine Righetti e Leão Serva, da Folha.

Jair Bolsonaro durante entrevista coletiva no Rio de Janeiro - Mauro Pimentel - 11.out.18/AFP

 

Uma das questões colocadas por Trump aos jornalistas é: Como ser efetivo e incisivo ao reportar suas palavras e ações? Dois anos depois, você diria que estão mais perto de responder a isso?

Trump nos Estados Unidos, como Bolsonaro no Brasil, provou ser um desafio para os jornalistas. Muito cedo, as pessoas já se debatiam sobre como noticiar palavras e ações que eram francamente extraordinárias, excepcionais, para um presidente americano. Se ele diz inverdades, devemos chamá-lo de mentiroso? Se ele usa linguagem depreciativa repetidamente, nós o chamamos de racista?

A imprensa se debateu com tudo isso enquanto Trump se mantinha ativamente no ataque contra a imprensa, fazendo de nós um dos principais oponentes de sua retórica. Isso deve ser ignorado ou mostrado pelos repórteres que o cobrem? É um território desconhecido para os jornalistas americanos.

Como você avalia a experiência de questionar as mentiras que ele fala?

Eu tenho sido um defensor de apontar as mentiras que ele conta. Não fazê-lo seria um insulto aos leitores. Se ele constantemente diz coisas que são claramente falsas, como você poderia reagir de outra maneira?

Nosso trabalho como jornalistas é buscar a verdade. Acho que a maioria dos veículos americanos de notícias está agora confortável com essa postura, embora tenha custado a polarização contínua do público, parte do qual considera essa abordagem muito agressiva e partidária.

O jornalista Kyle Pope - Reprodução/Kyle Pope/Facebook

Jornalistas brasileiros estão enfrentando desafios semelhantes com Bolsonaro, de posturas ainda mais radicais sobre ditadura, tortura, estupro. Você vê algum exemplo, na própria história do jornalismo, sobre como cobrir figura tão extrema?

Sobre Bolsonaro, a história mostra que os jornalistas precisam se precaver contra a normalização do comportamento extraordinário.

Nos EUA, enfrentamos recentemente essa situação em que crianças imigrantes estavam sendo detidas sem seus pais, em condições adversas. A imprensa e grande parte do público americano ficaram horrorizados.

À medida que a notícia e os debates políticos continuaram, os repórteres seguiram em frente, e isso começou a ser visto como o novo normal, que as crianças imigrantes seriam detidas contra a sua vontade. Mas então os veículos tiveram de parar e dizer: "Não, isso não é normal. Esse não é o novo status quo. Isso é inaceitável". E eventualmente a política acabou sendo revertida.

É o mesmo processo de pensamento com Bolsonaro. Quando ele diz coisas ultrajantes, racistas ou sexistas, você pode repetir uma vez, duas vezes, uma terceira vez. Mas então os repórteres começam a perguntar até onde vai a constante repetição. Eu acho que essas coisas são novidade e que os brasileiros precisam saber o que ele diz.

Você acha que existe precedente para esse desafio colocado por Bolsonaro ou Trump à imprensa? Podemos ver isso nos anos 1930, talvez, com a ascensão de todos os tipos de nacionalismo?

Em termos de história, temos de ter o cuidado de separar as atitudes em relação à imprensa da política. Os presidentes americanos, pelo menos, há muito tempo não gostam e desconfiam da mídia. Todos tentaram manipulá-la. Alguns mentiram para isso. Então isso não é novo. O mesmo, creio, vale no Brasil.

O que estamos falando agora, porém, vai além disso. O que assistimos é uma erosão da visão de que a imprensa é um pilar fundamental de uma sociedade democrática. E Trump alimentou essa percepção, chamando constantemente a imprensa de mentirosos ou inimigos ou o mal. Isso está contribuindo para a falta de confiança na imprensa como instituição. E nos leva de volta a partes mais sombrias da nossa história, em todo o mundo.

Nos EUA, até Richard Nixon, que odiava repórteres visceralmente, reconheceu o papel da mídia nos freios e contrapesos de um sistema democrático. Trump não faz isso.

O que me assusta é quantos americanos e, temo eu, quantas pessoas em outras partes do mundo, são facilmente influenciados por essa ideia de que a imprensa não é importante. Isso pode nos levar a alguns lugares muito perigosos.

O Brasil, como as Filipinas ou a Turquia, não tem as instituições fortes que os EUA desenvolveram ao longo de 200 anos, inclusive o jornalismo, mas também a Justiça e outras esferas do governo e da sociedade civil. Você vê uma ameaça de autoritarismo nessas democracias menos desenvolvidas?

Existe um temor muito real de que a retórica de Trump e sua falta de respeito pelas instituições democráticas, como a imprensa, estejam se espalhando pelo mundo. Vimos isso dramaticamente nesta semana, no caso do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que está desaparecido e se teme que tenha sido morto pelo governo saudita.

Em outros tempos, um governo como o da Arábia Saudita saberia que uma ação como esta contra um jornalista, especialmente um que escreve para um jornal americano, como Khashoggi, seria simplesmente inaceitável para qualquer governo dos EUA. Mas aqueles anteparos agora se foram. Trump falou muito pouco de substancioso sobre o desaparecimento. A eliminação dessas restrições terá consequência e elas não serão boas.

Goste-se ou não, os EUA desempenharam um papel durante o último meio século como uma voz forte na defesa de imprensa livre, de vozes livres. Trump não apenas silenciou aquela voz, mas a reverteu. E autocratas e ditadores ao redor do mundo estão percebendo. Temo que isso piore antes de melhorar.

A eleição e agora o governo nas Filipinas têm o Facebook como praça de cobertura e debate. O Brasil é um pouco diferente, com o WhatsApp. Como você vê os obstáculos que as plataformas de mensagem colocam? Eles tornam a tarefa jornalística ainda mais difícil?

Não vejo muita diferença entre as duas plataformas, WhatsApp e Facebook, em termos de policiamento de desinformação e propaganda. Em ambos os casos, são inadequados. Acredito que agora existe uma pressão política e comercial significativa sobre o Facebook, pelo menos neste país, para colocar rédeas no conteúdo verdadeiramente perigoso em sua plataforma. Conteúdo que vimos levar à tragédia em lugares como Mianmar, Serra Leoa e outros.

A CJR hoje cobre o jornalismo digital e as plataformas extensivamente. Já estamos inteiramente no reino do jornalismo digital? Já é tudo a mesma coisa?

Não tenho dúvida de que o futuro do jornalismo e da informação é digital. Nós da CJR temos uma revista impressa, e eu a adoro, e os nossos leitores a adoram. Mas não é como a maioria dos nossos leitores nos lê. Não é onde o público está. Acho que todos nós dobramos a esquina, em termos de disposição das pessoas para ler narrativas longas na web e nos seus telefones. Isso está acontecendo e é uma coisa boa e só vai se expandir.

Acho que onde o jornalismo ainda não descobriu seu lugar é nas mídias sociais, especialmente nos EUA. Ainda é uma bagunça de notícias, fofocas e opiniões. Ainda não se estabeleceu qual será seu propósito mais útil.

Kyle Pope, 54, é editor-chefe e publisher da Columbia Journalism Review, revista da faculdade de jornalismo da Universidade Columbia. Jornalista há três décadas, foi correspondente internacional do Wall Street Journal e editor-chefe do semanário New York Observer, então de Jared Kushner, hoje assessor da Casa Branca

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