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Gary Abernathy

Desdém de Trump pela imprensa é compreensível, mas Khashoggi merece tratamento melhor

Nenhum acordo comercial pode pesar mais que responsabilidade de defender liberdade de expressão

Gary Abernathy
The Washington Post

Nossos órgãos de imprensa mais elogiados frequentemente se desviam do caminho na cobertura do presidente Donald Trump, e Trump reage de acordo. Suas réplicas francas, furiosas e desdenhosas a jornalistas que ele sabe que são seus inimigos não constituem ataques ao jornalismo, mas àqueles que abusam dos privilégios jornalísticos para promover sua agenda política pessoal.

Trump disse recentemente a Chris Wallace, da Fox News: “... ninguém acredita na Primeira Emenda mais que eu ... sou totalmente a favor da mídia, sou totalmente a favor de (uma) imprensa livre”. Não é incongruente ter essa opinião e ainda assim odiar um establishment jornalístico liberal aparentemente determinado a destruir sua Presidência.

Manifestantes com máscaras do príncipe saudita Mohammed bin Salman e do presidente dos EUA, Donald Trump, protestam contra a morte do jornalista em Washington
Manifestantes com máscaras do príncipe saudita Mohammed bin Salman e do presidente dos EUA, Donald Trump, protestam contra a morte do jornalista em Washington - Jim Watson-19.out.2018/AFP

Mas então chegamos ao caso de Jamal Khashoggi. Mais do que qualquer outra coisa que Trump já disse ou fez com relação à imprensa, sua resposta vergonhosa ao assassinato do jornalista saudita reforça as alegações de seus críticos de que ele não demonstra compromisso suficiente com o direito à liberdade de expressão e de dissensão.

Não, Khashoggi não era cidadão americano, embora três de seus filhos tenham essa distinção e ele próprio fosse residente nos Estados Unidos. Sim, o assassinato de Khashoggi é apenas um entre incontáveis exemplos de atos violentos e abusos dos direitos humanos cometidos pela Arábia Saudita e que foram historicamente ignorados por presidentes americanos. Sim, em seus textos Khashoggi às vezes defendia grupos como a Irmandade Muçulmana, vista por muitos como organização terrorista, e na década de 1980 formou um relacionamento com Osama bin Laden, mas ele não expressou nenhum apoio ao extremismo.

Mas nada disso vem ao caso. Se os Estados Unidos representam alguma coisa, essa coisa é o direito à livre expressão, mesmo à livre expressão de opiniões que pareçam erradas ou repreensíveis.

Segundo relatos dignos de crédito, Khashoggi foi emboscado, torturado, estrangulado e esquartejado em um consulado saudita na Turquia –tudo isso porque, como colunista colaborador do Washington Post e outros veículos, ele teceu críticas ao governo saudita.

Atenção demais vem sendo voltada, inclusive por Trump, à questão de se o príncipe herdeiro saudita foi o mandante do assassinato de Khashoggi, como a CIA teria concluído que foi o caso. Tudo o que interessa é que o assassinato aconteceu em um consulado saudita, em um ataque evidentemente premeditado, e que foi subsequentemente negado, acobertado e descrito como acidente, até que o governo saudita acabou admitindo que ocorreu. Mesmo que o príncipe herdeiro não o tenha encomendado, Trump precisa responsabilizar os sauditas.

Por mais que veículos de imprensa como o Washington Post e o New York Times às vezes provoquem a ira –ocasionalmente justificada— do presidente, eles são instituições célebres e reverenciadas da independência e liberdade americana, singulares por sua história e linhagem jornalística. Como colunista colaborador do Washington Post, Khashoggi representava no exterior o jornalismo americano do mais alto nível, mesmo que possa ocasionalmente ser falho.

Neste caso, não há possibilidade legítima de contrabalançar benefício econômico à liderança moral. Existe apenas uma mensagem que deveria vir de um presidente americano: isto não pode ser aceito. Quantidade nenhuma de acordos comerciais perdidos, mesmo acordos que valham bilhões de dólares; perigo algum de escalada dos preços do petróleo e preocupação alguma com alianças estratégicas podem pesar mais que a responsabilidade do presidente dos Estados Unidos de defender fortemente a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão em todo o mundo. A única resposta aceitável é a seguinte: se um país retalia com a tortura e o assassinato de um jornalista que representa um veículo de imprensa americano, haverá um preço pesado a pagar.

“A América em primeiro lugar” é uma mensagem trumpiana que é bem vista em boa parte do interior do país e pela base sólida de Trump. O presidente citou o tema entre suas razões para ser leniente com a Arábia Saudita no caso do assassinato de Khashoggi. Ao render-se diante dos sauditas, contudo, Trump parece ter assinalado que o êxito dos EUA é dependente da generosidade saudita. Está longe de ser uma mensagem que transmite a força dos Estados Unidos.

Uma semana atrás tive o privilégio de conversar com estudantes de pós-graduação da Columbia Journalism School, em Nova York. Como faço com frequência quando me dirijo a estudantes em ambientes diversos, defendi muitos dos ataques de Trump a jornalistas cujas posições políticas pessoais os levaram a fazer uma cobertura enviesada deste presidente. Se eu estivesse diante desses estudantes hoje, não poderia apresentar nenhum argumento para desculpar a resposta inadequada do presidente ao assassinato do jornalista Jamal Khashoggi.

Na entrevista que deu a Wallace na Fox News, Trump disse que não ouviu a gravação de áudio do assassinato brutal de Khashoggi. Disse que foi aconselhado a não ouvi-la porque é uma gravação perturbadora “de sofrimento”.

Ouça a gravação, presidente. Ouça a gravação. E, quando a ouvir, lembre-se que esse não foi apenas um ataque contra um dissidente saudita cometido como represália política. Foi um ataque ao próprio jornalismo, uma demonstração vívida do que alguns países se dispõem a fazer contra o próprio conceito de uma imprensa livre e independente –torturá-la, matá-la, esquartejá-la.

Trump frequentemente, compreensivelmente, manifesta desdém por uma mídia noticiosa dominada por uma mentalidade liberal que despreza a ele e o que ele representa. Mas ele não pode deixar que seu desdém por organizações –mesmo aquelas que às vezes abusam de suas plataformas jornalísticas—amesquinhe o ideal do próprio jornalismo, que continua a constituir o fundamento de uma sociedade livre e informada, além de ser uma das mais importantes bases da democracia. É isso o que ele precisa defender e proteger no caso trágico de Jamal Khashoggi.

Colunista colaborador do Washington Post, Gary Abernathy é jornalista freelancer e ex-editor de jornais residente em Hillsboro, Ohio; tradução de Clara Allain.

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