Crianças migrantes ainda são separadas dos pais ao cruzarem a fronteira dos EUA

Duas centenas de casos foram registrados nove meses depois da proibição da prática por Trump

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Oakland (Califórnia) | The New York Times

Quase nove meses depois que o governo Donald Trump rescindiu oficialmente sua política de separação das famílias migrantes que cruzam ilegalmente a fronteira dos Estados Unidos, mais de 200 crianças migrantes foram tiradas de seus pais e outros parentes e colocadas sob cuidados institucionais. Algumas delas já passaram meses em abrigos e lares provisórios a milhares de quilômetros de distância dos pais.

Os últimos dados relatados ao juiz federal que monitora uma das políticas migratórias mais polêmicas do presidente Trump mostra que 245 crianças foram removidas de suas famílias desde que o tribunal ordenou que o governo suspendesse as separações habituais sob a política de fronteiras de "tolerância zero" da última primavera. Algumas das novas separações são efetuadas sem uma documentação clara que permita acompanhar a localização das crianças.

Imagens de mães e crianças chorando na fronteira no ano passado causaram uma intensa reação em políticos dos dois partidos, e quatro ex-primeiras-damas, mais a atual, Melania Trump, manifestaram horror diante dessa política. Apesar do decreto de Trump que a rescindiu, em 20 de junho passado, porém, a prática não foi totalmente suspensa.

Sob a política original, a maioria das crianças foi removida porque os pais que cruzaram a fronteira ilegalmente estavam sujeitos a processo criminal. As separações recentes ocorreram, em geral, porque os pais foram detidos por fraude, doença transmissível ou histórico criminal —em alguns casos pequenas infrações cometidas há anos, que normalmente não levariam à perda da custódia paterna.

Orfa, uma migrante de Honduras, em um ônibus que partiu de San Antonio, no Texas, com seus filhos Rachel (à direita) e Carolina (à esquerda), após serem liberados de centro de detenção nos EUA - Loren Elliott / Reuters

As novas separações estão ocorrendo em meio a um influxo sem precedentes de famílias migrantes pela fronteira sul, o que salienta o fracasso das políticas linha-dura do governo Trump para contê-las. A Patrulha de Fronteiras deteve 76.103 migrantes em fevereiro, um pico de 11 anos para esse mês. Entre os interceptados havia cerca de 40.000 membros de famílias, dois terços a mais que em janeiro.

No Congresso na semana passada, os democratas fritaram a secretária de Segurança Interna, Kirstjen Nielsen, sobre a política de separação, citando pesquisas que concluíram que a separação dos pais pode causar danos psicológicos duradouros em crianças.

A separação das famílias também ocorria às vezes no governo Barack Obama, mas só raramente e em casos extremos em que a segurança de uma criança parecia estar em risco.

Autoridades de Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) dizem que as separações são legais sob os parâmetros definidos pelo tribunal e se destinam a proteger as crianças, que segundo elas podem ser ameaçadas de tráfico humano ou por adultos que fingem ser pais para aproveitar a vantagem dada pelas leis de imigração dos Estados Unidos.

"A CBP não declara que um pai representa perigo para uma criança arbitrariamente ou sem mérito", disse a agência em um comunicado. Ela afirmou que os agentes "mantêm a unidade familiar na maior medida operacionalmente possível", separando as crianças só na presença de uma "exigência legal" definida em uma política escrita ou "uma preocupação articulável de segurança que exija a separação."

Mas a oposição a novas separações vem crescendo dentro e fora do governo federal. No Escritório de Reassentamento de Refugiados do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, que supervisiona o atendimento a crianças separadas até que elas possam se reunir com suas famílias, algumas autoridades tentaram resistir a receber crianças enviadas à agência pela Patrulha de Fronteiras.

Segundo um oficial que não tinha autorização para comentar assuntos do governo e falou sob a condição do anonimato, funcionários em alguns casos levantaram questões com agentes da Patrulha de Fronteiras sobre separações que parecem ter pouca ou nenhuma justificativa. Em alguns desses casos, agentes de fronteira se recusaram a dar mais informações, segundo a autoridade, ou quando foram fornecidos documentos adicionais, às vezes eram tão mal redigidos que se tornavam ilegíveis.

O oficial, juntamente com outro funcionário do Departamento de Segurança Interna, a agência matriz da Patrulha de Fronteiras, disse que algumas separações ocorrem sem notificação formal ao Escritório de Reassentamento de Refugiados. As duas autoridades disseram que foram avisadas sobre preocupações com uma aparente inconsistência nos padrões aplicados por agentes de fronteira para determinar quando uma família deve ser separada.

O fracasso em manter registros precisos sugere que mais crianças podem ter sido separadas do que as 245 registradas oficialmente até 20 de fevereiro.

O The New York Times analisou vários casos de crianças que foram separadas desde que a política foi oficialmente cancelada, e soube de muitos outros por meio de advogados que cuidaram deles. Algumas das novas separações, como mostrou a análise, ocorreram em famílias em que um dos pais tinha sido condenado por dirigir embriagado, ou uma condenação por furto não violento há 20 anos. Em um caso, o pai ou a mãe foi condenado por posse de pequena quantidade de maconha.

Donna Abbott, vice-presidente de serviços de refugiados e imigrantes nos Serviços Cristãos Bethany, instituição terceirizada que acomoda crianças migrantes em lares provisórios até que possam se reunir com suas famílias, disse que a maioria dos casos de separação familiar não listam motivos detalhados, dificultando avaliar se foram adequados.

Por exemplo, alguns documentos só registram que o pai era suspeito de ligação com bandos ou tinha histórico criminal, sem mais informações. "É invasão de propriedade ou é assassinato?", disse Abbott.

Em dezembro, uma mãe que viajou de El Salvador com três filhos foi detida e colocada em um ônibus para uma instalação de detenção no Arizona, enquanto seus filhos, de 5, 8 e 11 anos, foram enviados para lares provisórios em Nova York.

A mãe, Deisy Ramírez, 38, disse que fazia quase seis semanas que tinha falado com as crianças.

Elas estavam "arrasadas", disse a irmã de Deisy, Silvia Ramírez, que tentava convencer o governo a permitir que ela levasse as crianças para morar com ela em Seattle enquanto sua irmã estava detida. "Eles não conseguiam entender por que foram separados", disse ela.

Em 1º de março, a filha mais velha de Deisy foi transferida para um hospital depois de ameaçar o suicídio, segundo Silvia Ramírez, e continuava lá mesmo depois da libertação de sua mãe, na semana passada.

"Nunca imaginei que isso pudesse acontecer", disse Deisy na sexta-feira (8), com a voz embargada. "Tudo o que eu quero é abraçar meus filhos e estar junto deles."

Seu advogado, Ricardo de Anda, disse que não recebeu resposta a seu pedido formal sobre o motivo da separação. Ele suspeita que possa estar relacionado ao fato de que Deisy Ramírez foi deportada dos Estados Unidos há mais de dez anos. Ele enviou aos advogados do governo uma série de e-mails, que afinal conseguiram sua libertação.

No sábado, um dia após a libertação do centro de detenção no Arizona, Deisy se preparava para voar a Nova York para se reunir com seus filhos.

Ruben García, que dirige uma rede de abrigos para migrantes em El Paso, no Texas, disse que as autoridades de imigração neste mês libertaram uma jovem de 18 anos da Guatemala, que estava emocionalmente perturbada.

A mulher disse que deu à luz menos de uma semana antes e foi separada do bebê. As autoridades de atendimento a crianças foram ao hospital para levar o bebê, que é um cidadão americano; agentes de imigração levaram a mãe de volta a uma cela de detenção, onde ela aguardou por vários dias. As primeiras duas semanas do bebê foram passadas longe da mãe, que finalmente recuperou a custódia depois de várias intervenções de grupos de ajuda jurídica, segundo García.

Desde que Trump encerrou as separações familiares sob a "tolerância zero", em 20 de junho, cerca de 2.700 crianças se reuniram a seus pais. Mas outras milhares que foram separadas antes que a política entrasse em vigor oficialmente não foram beneficiadas, segundo o Escritório do Inspetor Geral do Departamento de Saúde e Serviços Humanos. Os investigadores citaram a falta de um sistema de rastreamento eficiente.

A União Americana por Liberdades Civis solicitou que o governo localize as famílias, e na sexta-feira o juiz Dana Sabraw decidiu que elas devem ser incluídas no litígio pendente sobre proteção e reunião de famílias separadas.

"O marco de uma sociedade civilizada se mede por como ela trata sua população e os que estão dentro de suas fronteiras", escreveu o juiz.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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