Descrição de chapéu The New York Times

Como a China usa a tecnologia para segregar e subjugar minorias

Plataforma tem banco com 68 bilhões de registros, incluindo de movimentos e atividades de pessoas

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Chris Buckley, Paulo Mozur
KASHGAR (CHINA) | The New York Times

Uma visão abrangente de Kashgar, uma cidade antiga no oeste da China, apareceu numa tela que ocupava uma parede inteira. Ícones coloridos assinalavam as delegacias de polícia, os checkpoints e os locais onde haviam ocorrido incidentes recentes de segurança.

Policiais patrulham uma feira em Kashgar, região chinesa em que tecnologia é usada para monitorar em massa de uigures e outras etnias
Policiais patrulham uma feira em Kashgar, região chinesa em que tecnologia é usada para monitorar em massa de uigures e outras etnias - Johannes Eisele/AFP

Uma técnica explicou que com o clique de um mouse a polícia pode puxar vídeo ao vivo de qualquer câmera de vigilância ou olhar mais de perto para qualquer pessoa que esteja passando por um dos milhares de checkpoints da cidade.

Para fazer uma demonstração, ela mostrou como o sistema pode encontrar a foto, o endereço residencial e o número de identificação oficial de uma mulher que tinha sido parada num checkpoint numa via principal.

O sistema vasculhou os dados de bilhões de pessoas e então exibiu informações detalhadas sobre o histórico educacional da mulher, seus familiares, vínculos com um caso anterior e visitas que ela fizera recentemente a um hotel e um café com internet.

Apresentada numa feira industrial na China, a simulação proporcionou aos presentes um vislumbre raro de um sistema que hoje espiona quase todos os lugares em Xinjiang, a região conturbada onde Kashgar se situa.

É nesta visão de vigilância high-tech —precisa, onipresente, infalível— que os líderes chineses estão investindo bilhões de dólares todos os anos, fazendo de Xinjiang uma incubadora de sistemas de policiamento cada vez mais intrusivos que podem se espalhar pelo país e mais além.

É também essa a visão que alguns dos assessores do presidente Trump começaram a citar quando defendem a adoção de medidas mais duras contra empresas chinesas na guerra comercial que se intensifica.

Mais além das preocupações com barreiras de mercado, roubo e segurança nacional, eles argumentam que a China está usando tecnologia para fortalecer o autoritarismo na própria China e fora dela –e que os Estados Unidos precisam sustar esse processo.

Desenvolvido e vendido pela empresa estatal da área de defesa China Electronics Technology Corp. (CETC), o sistema usado em Kashgar está na vanguarda de um novo e crescente mercado de tecnologia que o governo pode usar para monitorar e subjugar milhões de uigures e membros de outros grupos étnicos muçulmanos em Xinjiang.

Tratando a cidade como campo de batalha, a plataforma foi projetada “para aplicar as ideias de ciber-sistemas militares na segurança pública civil”, disse o engenheiro da CETC Wang Pengda em um post num blog oficial. “Foi verdadeiramente uma ideia à frente de seu tempo.”

O sistema faz uso de redes de informantes de bairro; rastreia indivíduos e analisa seu comportamento; procura antecipar-se a potenciais crimes, protestos ou violência, e, finalmente, recomenda quais forças de segurança devem ser utilizadas, disse a empresa.

Um slogan apareceu na tela durante a demonstração: “Se uma pessoa existe, haverá rastros. Se houver conexões, haverá informação.”

Uma investigação do jornal The New York Times baseada em documentos do governo e da empresa, além de entrevistas com pessoas do setor, concluiu que a China está, concretamente, deitando as bases para Xinjiang ser submetida à vigilância segregada, usando um exército de profissionais de segurança para obrigar os membros de minorias étnicas a submeter-se a monitoramento e coleta de dados, ao mesmo tempo em os chineses da maioria han, que compõem 36% da população de Xinjiang, são de modo geral isentos dessa vigilância.

É uma jaula virtual que complementa os campos de doutrinação em Xinjiang em que as autoridades mantêm 1 milhão ou mais de uigures e outros muçulmanos em detenção, num esforço para transformá-los em cidadãos seculares que nunca irão contestar o Partido Comunista.

O programa ajuda a identificar pessoas a serem enviadas aos campos ou investigadas e continua a monitorá-las depois que são libertadas.

A administração Trump estuda a possibilidade de colocar em uma lista negra uma das empresas chinesas ao centro da campanha em Xinjiang, a Hikvision, e impedi-la de comprar tecnologia americana.

A Hikvision é importante fabricante de equipamentos de videoespionagem, com clientes em todo o mundo e em toda parte em Xinjiang, onde suas câmeras estão instaladas em mesquitas e campos de detenção. A CETC é dona de cerca de 42% da empresa, por meio de subsidiárias.

“Xinjiang talvez seja uma espécie de exemplo mais extremo e intrusivo dos sistemas de vigilância em massa usados na China”, disse Maya Wang, pesquisadora sobre a China na Human Rights Watch e estudiosa da tecnologia usada na região. “Esses sistemas foram criados para uma finalidade muito explícita: mirar contra os muçulmanos.”
 

Fotos de apresentações da China Electronics Technology Corporation em uma feira
Fotos de apresentações da China Electronics Technology Corporation em uma feira - Paul Mozur/The New York Times

Cercas virtuais

Segundo a demonstração à qual assistiu um repórter do NYT na feira industrial, que aconteceu em Wuzhen, no leste da China, no final de 2017, na cidade de Kashgar, com 720 mil habitantes –85% dos quais são uigures– , a plataforma da CETC utiliza um banco de dados com 68 bilhões de registros, incluindo registros dos movimentos e atividades de pessoas.

A título de comparação, o sistema nacional de verificação instantânea de antecedentes criminais usado pelo FBI contava com cerca de 19 milhões de registros no final de 2018.

A polícia de Xinjiang usa um aplicativo criado pela CETC para smartphones que utilizam o sistema operacional Android para incluir informações nos bancos de dados.

A Human Rights Watch teve acesso ao aplicativo e o analisou. A entidade disse que o app ajuda as autoridades a identificar comportamentos que elas veem como suspeitos, incluindo viagens longas ao exterior ou um consumo “incomum” de eletricidade.

O app, que o NYT também examinou, permite que policiais identifiquem pessoas que elas acreditam que tenham parado de usar um smartphone, tenham começado a evitar entrar e sair de casa pela porta da frente ou tenham reabastecido o carro de outra pessoa.

A polícia utiliza o aplicativo em checkpoints que funcionam como “cercas” virtuais espalhadas por Xinjiang.

Quando uma pessoa é apontada como ameaça em potencial, o sistema pode ser programado para soar um alarme cada vez que ela tenta sair de seu bairro ou entrar em um local público, disse a Human Rights Watch.

O governo chinês defende o programa de vigilância, dizendo que ele já beneficiou a segurança na região, e diz que os campos de doutrinamento em Xinjiang são centros de formação para o trabalho.

A Hikvision nega envolvimento em “quaisquer ações inapropriadas em Xinjiang”, e a CETC, contatada pelo telefone, se negou a dar declarações.

O Partido Comunista assumiu o controle da região em 1949. Não é de hoje que ele nutre desconfiança em relação aos uigures, cuja cultura turcomana e religião muçulmana inspiraram reivindicações de autonomia e que ocasionalmente lançaram ataques contra alvos chineses.

O investimento do estado em vigilância decolou uma década atrás, depois de protestos antichineses na capital regional, Urumqi, terem feito quase 200 mortos.

A grande enxurrada de contratos de segurança aconteceu depois de Xi Jinping assumir o comando do partido, no final de 2012.

Em 2017 os gastos com segurança interna em Xinjiang chegaram a quase US$ 8,4 bilhões, seis vezes o valor gasto em 2012, incluindo verbas para vigilância, pessoal e os campos de doutrinamento.

A Hikvision fechou contratos em Xinjiang no valor de pelo menos US$ 290 milhões por suas câmeras e seus sistemas de reconhecimento facial.

Outra empresa que está se beneficiando da corrida ao ouro da segurança em Xinjiang é a Huawei, gigante chinesa da tecnologia que os EUA descreveram recentemente como ameaça à segurança.

No ano passado, a Huawei firmou um acordo com a polícia da região para ajudar policiais a analisarem dados.
 

'O objetivo aqui é incutir medo'

O programa para colher informações de uigures e outros muçulmanos começa na periferia das cidades de toda a região de Xinjiang, em construções que parecem praças de pedágio.

Em vez de moedas, esses lugares colhem informações pessoais. Numa passagem recente por um checkpoint em Kashgar, passageiros e motoristas, quase todos uigures, saíram de seus veículos, passaram por portões automatizados fabricados pela CETC e passaram seus cartões de identidade por um leitor.

“Cabeça erguida”, repetiam as máquinas enquanto fotografavam os motoristas, sob o olhar atento de guardas armados.

Nem todos são obrigados a suportar a inconveniência. Em vários checkpoints, pessoas de grupos privilegiados –chineses da etnia han, autoridades uigures dotadas de passes especiais, estrangeiros—são chamadas a passar por “canais verdes”.

Desse modo as autoridades criaram mundos separados, mas sobrepostos, nas mesmas ruas e nos bancos de dados online da polícia –um para minorias muçulmanas e outro para chineses da etnia han.

“O objetivo aqui é incutir o medo –medo que a tecnologia de espionagem deles consiga enxergar cada recôndito da vida das pessoas”, explicou Wang Lixiong, autor chinês que já escreveu sobre Xinjiang e sobre o estado espião chinês.

“O número de pessoas e a quantidade de equipamentos usados para segurança fazem parte do efeito de dissuasão.”

As autoridades em Xinjiang às vezes também obrigam pessoas a instalar em seus telefones um aplicativo chamado “Guarda Internet Limpa”, para monitorar o aparelho e flagrar conteúdos que o governo considere suspeitos.

Nos últimos anos, Kashgar e outros locais de Xinjiang vêm sistematicamente colhendo DNA e outros dados biológicos de seus habitantes, especialmente os que são muçulmanos.

Hoje as autoridades colhem sangue, impressões digitais, gravações de voz, fotos do rosto feitas de diversos ângulos e exames da íris, que podem fornecer uma identificação individual única, como as impressões digitais.

Esses bancos de dados ainda não estão completamente integrados, e, apesar do brilho futurista do estado de vigilância em Xinjiang, as autoridades dependem de centenas de milhares de policiais, outros funcionários e monitores de bairro para colher informações e registrá-las no sistema.

“Corremos o risco de subestimar o grau em que este estado policial high-tech ainda exige muita mão de obra humana”, disse Adrian Zenz, pesquisador independente que estudou os gastos com segurança em Xinjiang.

“É a combinação de mão de obra e tecnologia que torna o estado policial do século 21 tão poderoso.”

Tradução de Clara Allain

 

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