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The New York Times Venezuela

Incapacidade de entender resiliência de Maduro mostra ingenuidade de democracias liberais

Não basta querer para que uma transição democrática ocorra na Venezuela

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Raul Gallelos
Bogotá | The New York Times

Já faz cinco meses desde que o deputado oposicionista Juan Guaidó assumiu o papel simbólico de presidente interino da Venezuela, na esperança de afastar do poder o ditador Nicolás Maduro.

Apesar de mais de 50 países terem reconhecido Guaidó como o presidente legítimo da Venezuela, apesar de sanções petrolíferas impostas pelos Estados Unidos, de protestos de rua maciços e da pior crise econômica da história moderna, Maduro persiste.

A perseverança do governo combalido de Maduro deixa perplexos a comunidade internacional, os acadêmicos, os analistas e os jornalistas.

O ditador Nicolás Maduro, à esq., e o ministro da Defesa da Venezuela, Vladimir Padrino, durante evento militar em Caracas
O ditador Nicolás Maduro, à esq., e o ministro da Defesa da Venezuela, Vladimir Padrino, durante evento militar em Caracas - 3.jun.19/Palácio de Miraflores via Reuters

Chame isso de falta de imaginação negativa –ou seja, da falta de capacidade de visualizar os piores cenários possíveis e se preparar para eles.

A incapacidade de entender a resiliência de um regime autoritário mostra a ingenuidade política dessas democracias liberais.

A liberdade e a riqueza nos dão força, mas podem também se converter em fraqueza. Acabamos ficando despreparados para o impensável e nos deixamos pegar de surpresa por acontecimentos como os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, a ascensão de Donald Trump ou o voto pelo brexit no Reino Unido. 

Quando a probabilidade de Maduro conseguir desafiar as expectativas e se conservar no poder por muito mais tempo é mencionada em reuniões com políticos em Washington ou financistas em Nova York, frequentemente suscita reações de indignação ou descrença. Sei disso muito bem.

Nos últimos três anos e meio, no meu trabalho com a consultoria global de gestão de riscos Control Risks, estamos alertando o mundo de que Maduro e seu movimento político chavista conseguirão se aferrar ao poder por mais tempo do que a maioria das pessoas imagina.

Os amigos de Maduro em Cuba, China, Rússia e Turquia o ajudam a continuar no poder. O Ocidente constantemente subestima sua determinação e sua ausência de escrúpulos.

Quando explico isso a clientes incrédulos, muitas vezes a reação é um silêncio desconfortável ou uma enxurrada de argumentos contrários em tom irado.

Um jornalista perguntou, em tom de brincadeira, se minha opinião profissional era resultante de eu ser um chavista disfarçado.

As pessoas que vivem em democracias onde prevalecem a lógica, em que instituições funcionam corretamente e sociedades civis são fortes custam a entender os países onde essas normas não estão presentes.

Presumimos que ditadores em dificuldades financeiras vão tombar rapidamente porque não conseguirão continuar a comprar a lealdade do povo.

Mas deixamos de entender que, quando o dinheiro se torna escasso, regimes sem escrúpulos, como os de Coreia do Norte, Cuba e Venezuela, lançam mão do medo e terror para obrigar os cidadãos a serem obedientes, podendo inclusive encarcerar ou assassinar dissidentes e seus familiares.

Também nos agrada pensar que as ditaduras estariam constantemente se equilibrando na beira do abismo, já que suas instituições são fracas ou corruptas.

Mas regimes como o de Maduro incentivam a corrupção como maneira de garantir a lealdade de burocratas movidos pela cobiça e para ter alguma coisa com a qual ameaçá-los no caso de eles se bandearem para o lado oposto.

Temos exemplos de sobra de seguidores corruptos de Maduro que passaram a ser perseguidos quando se voltaram contra o regime.

No esquema de corrupção mais recente na Venezuela, sabe-se de casos em que funcionários do órgão que emite passaportes cobraram até US$ 2.000 de cidadãos para lhes emitir um passaporte novo.

A corrupção é uma armadilha; os funcionários públicos criminalizados têm dificuldade em viver uma vida normal fora do regime, porque sempre correrão o risco de acabar na prisão ou mortos.

As instituições criminalizadas possuem poder de permanência justamente por serem corruptas.

Uma ideia equivocada particularmente sentimental é que pessoas famintas lutarão por sua liberdade e acabarão inevitavelmente derrubando regimes.

Estudos indicam que pessoas que passam por escassez de alimentos concentram sua atenção em sua própria sobrevivência no dia a dia.

A fome deixa as pessoas mais dependentes do Estado que as controla, exatamente como os venezuelanos hoje são mais dependentes dos alimentos doados pelo regime de Maduro.

Os cidadãos maltratados caem num estado de “impotência aprendida”, tornando-se mais maleáveis e acovardados.

Pessoas famintas raramente derrubam ditaduras. Isso é feito por golpes ou insurgências bem organizados.

Se e quando um regime corrupto cai, também gostamos de pensar que os mocinhos vão assumir o controle do país.

Mas se Maduro deixar o poder, especialmente se for após uma negociação, vários chavistas que controlam as alavancas do regime podem acabar assumindo a direção. Ninguém abre mão do poder de bom grado sem receber algo em troca.

Isso quer dizer que figuras do regime que a comunidade internacional vê como impalatáveis ainda poderão exercer o poder num período pós-Maduro, provavelmente dividindo-o com membros da oposição de viés populista.

É irrealista supor que líderes democráticos e pró-empresas passarão a controlar a Venezuela imediatamente se e quando Maduro se for.

Para ajudar os países a superar governantes ditatoriais, a comunidade internacional precisa primeiramente abrir os olhos para a realidade.

O pensamento positivo virou quase uma ideologia nos círculos da política externa. Mas é apenas quando começarmos a levar em conta tudo que pode dar errado que poderemos nos preparar com antecedência para lidar com resultados negativos que possam vir a ocorrer.

Também é fundamental entender como funcionam regimes iliberais e criminosos, e não simplesmente supor que eles responderão aos mesmos incentivos que nos motivam.

Esperar pelo resultado melhor não salvará os países do atraso político. Para conquistar uma transição democrática na Venezuela é preciso mais do que apenas querer que ela ocorra.

Tradução de Clara Allain   

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