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Luis Trelles

Mesmo após queda de governador, Porto Rico continuará fervendo

Chance de movimento dar lugar a um líder populista e reacionário, como em outros países, é latente

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Luis Trelles
San Juan (Porto Rico)

Porto Rico está fervendo. Seis dias de manifestações abalaram uma ilha mais conhecida internacionalmente por ser um destino turístico no Caribe, com ambiente festivo de praia e música.

Todos os protestos tiveram a mesma obsessão: exigir a renúncia imediata do governador Ricardo Rosselló, que insiste em ficar. A atmosfera se tornou tão explosiva que Porto Rico parece um barril cheio de pólvora, e a cada dia que Rosselló permanece no cargo esse pavio fica mais e mais curto.

Ativistas fazem barricada em frente a policiais durante protesto contra o governador de Porto Rico, Ricardo Rosselló, em San Juan
Ativistas fazem barricada em frente a policiais durante protesto contra o governador de Porto Rico, Ricardo Rosselló, em San Juan - Gabriella N. Baez/Reuters

Um movimento assim pode ter consequências a longo prazo que os manifestantes não querem. Em 2013, grandes protestos surgiram em várias cidades do Brasil. O gatilho na ocasião foi o aumento dos preços do transporte público.

Assim como acontece agora em Porto Rico, o Brasil possuía uma classe média que se sentia sitiada, além de uma esmagadora desigualdade social, que deixaram o país com seu pavio muito curto.

Na Guatemala, em 2015, houve também uma explosão semelhante de frustração em massa. Esse movimento levou à renúncia do presidente Otto Pérez Molina. Havia uma sensação de "basta" contra a corrupção muito semelhante a que é sentida hoje na ilha.

Quando acenderam o pavio em Porto Rico? Pode-se dizer que foi há mais de uma década, quando ocorreu uma recessão econômica paralisante. Ou talvez em 2015, quando uma dívida impagável de mais de US$ 70 bilhões deixou a ilha falida.

Porto Rico é um território não incorporado dos Estados Unidos, e muitos porto-riquenhos pensam que a ilha é uma colônia americana.

Para enfrentar o problema da dívida, o Congresso em Washington impôs uma Junta de Supervisão Fiscal que controla as finanças públicas. 

Essa diretoria tem o poder de tomar decisões que se sobrepõem às decisões de políticos democraticamente eleitos na ilha. A receita usada para pagar a dívida tem sido o remédio amargo da austeridade.

E então o furacão Maria chegou. Cerca de 3.000 pessoas morreram nos dias e meses após a tempestade, de acordo com um estudo encomendado pelo próprio governo de Porto Rico. Três mil. Mas a administração de Rosselló insistiu por quase um ano que o furacão não deixou mais do que 64 vítimas.

A isso foi adicionado o fator Donald Trump. O presidente é o líder máximo de Porto Rico e tinha a responsabilidade de organizar a resposta do governo dos EUA à emergência.

Esses esforços foram duramente criticados por serem insuficientes. Trump respondeu com publicações ofensivas no Twitter e ataques a políticos locais.

Com tudo isso, alguém pode se perguntar por que o pavio levou tanto tempo para ser aceso.

O detonador finalmente chegou quando o FBI prendeu duas ex-funcionárias da alta hierarquia, acusadas de fraude e corrupção. As prisões foram seguidas pelo vazamento de conversas privadas do governador e 11 conselheiros próximos. Eram todos homens, claro. 

O bate-papo revelou piadas misóginas e desprezo homofóbico dirigido a vários setores da sociedade porto-riquenha. Em uma mensagem que atingiu diretamente a sensação de dor e perda de muitas pessoas na ilha, um oficial de alto nível zomba dos corpos acumulados após o furacão.

Agora que as pessoas ocuparam as ruas, foi liberada a fúria acumulada de tantos anos de austeridade e corrupção. 

A reação foi tão intensa quanto espontânea. Os cartazes e slogans que cobrem os protestos apresentam uma única afirmação: "Ricky, renuncie agora". É um movimento à medida do momento. Não há espaço para ver o que virá.

Manifestantes pedem a saída do governador de Porto Rico Ricardo Rossello
Manifestantes pedem a saída do governador de Porto Rico Ricardo Rossello - Gabriella N. Baez/Reuters

No caso do Brasil, os manifestantes não alcançaram seus objetivos iniciais após os protestos de 2013. Na linha de eventos que provocaram a eleição de Jair Bolsonaro, esses protestos são um ponto importante.

A "Primavera da América Central" de 2015 que começou na Guatemala também se desenrolou na decepção de muitas pessoas que se uniram para se livrar do presidente. 

A corrupção continua sendo um mal endêmico. Jimmy Morales, o presidente eleito após as manifestações, tornou-se um aliado de Trump.

Em Porto Rico, há também a ameaça dessa onda chegar ao Caribe. Há líderes políticos que mostram em público um comportamento muito parecido com o que o governador Rosselló mostrou em particular, na troca de mensagens. 

Quando Rosselló finalmente deixar o cargo (algo que parece quase inevitável no momento), toda a energia investida em expulsá-lo pode sumir. 

E um longo pavio poderia substituir o curto. O barril, porém, ainda estará cheio de pólvora. Ninguém sabe que direção Porto Rico pode seguir depois desse grande momento de ativismo político. 

Mesmo assim, os exemplos na região são preocupantes. A possibilidade de o movimento dar lugar a um líder populista e reacionário é latente, embora não possa ser vista no meio dos protestos agora.

 

Jornalista porto-riquenho, é produtor e editor da Radio Ambulante, podcast que conta histórias da América Latina   Tradução de Azahara Martín Ortega

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