Porto Rico está fervendo. Seis dias de manifestações abalaram uma ilha mais conhecida internacionalmente por ser um destino turístico no Caribe, com ambiente festivo de praia e música.
Todos os protestos tiveram a mesma obsessão: exigir a renúncia imediata do governador Ricardo Rosselló, que insiste em ficar. A atmosfera se tornou tão explosiva que Porto Rico parece um barril cheio de pólvora, e a cada dia que Rosselló permanece no cargo esse pavio fica mais e mais curto.
Um movimento assim pode ter consequências a longo prazo que os manifestantes não querem. Em 2013, grandes protestos surgiram em várias cidades do Brasil. O gatilho na ocasião foi o aumento dos preços do transporte público.
Assim como acontece agora em Porto Rico, o Brasil possuía uma classe média que se sentia sitiada, além de uma esmagadora desigualdade social, que deixaram o país com seu pavio muito curto.
Na Guatemala, em 2015, houve também uma explosão semelhante de frustração em massa. Esse movimento levou à renúncia do presidente Otto Pérez Molina. Havia uma sensação de "basta" contra a corrupção muito semelhante a que é sentida hoje na ilha.
Quando acenderam o pavio em Porto Rico? Pode-se dizer que foi há mais de uma década, quando ocorreu uma recessão econômica paralisante. Ou talvez em 2015, quando uma dívida impagável de mais de US$ 70 bilhões deixou a ilha falida.
Porto Rico é um território não incorporado dos Estados Unidos, e muitos porto-riquenhos pensam que a ilha é uma colônia americana.
Para enfrentar o problema da dívida, o Congresso em Washington impôs uma Junta de Supervisão Fiscal que controla as finanças públicas.
Essa diretoria tem o poder de tomar decisões que se sobrepõem às decisões de políticos democraticamente eleitos na ilha. A receita usada para pagar a dívida tem sido o remédio amargo da austeridade.
E então o furacão Maria chegou. Cerca de 3.000 pessoas morreram nos dias e meses após a tempestade, de acordo com um estudo encomendado pelo próprio governo de Porto Rico. Três mil. Mas a administração de Rosselló insistiu por quase um ano que o furacão não deixou mais do que 64 vítimas.
A isso foi adicionado o fator Donald Trump. O presidente é o líder máximo de Porto Rico e tinha a responsabilidade de organizar a resposta do governo dos EUA à emergência.
Esses esforços foram duramente criticados por serem insuficientes. Trump respondeu com publicações ofensivas no Twitter e ataques a políticos locais.
Com tudo isso, alguém pode se perguntar por que o pavio levou tanto tempo para ser aceso.
O detonador finalmente chegou quando o FBI prendeu duas ex-funcionárias da alta hierarquia, acusadas de fraude e corrupção. As prisões foram seguidas pelo vazamento de conversas privadas do governador e 11 conselheiros próximos. Eram todos homens, claro.
O bate-papo revelou piadas misóginas e desprezo homofóbico dirigido a vários setores da sociedade porto-riquenha. Em uma mensagem que atingiu diretamente a sensação de dor e perda de muitas pessoas na ilha, um oficial de alto nível zomba dos corpos acumulados após o furacão.
Agora que as pessoas ocuparam as ruas, foi liberada a fúria acumulada de tantos anos de austeridade e corrupção.
A reação foi tão intensa quanto espontânea. Os cartazes e slogans que cobrem os protestos apresentam uma única afirmação: "Ricky, renuncie agora". É um movimento à medida do momento. Não há espaço para ver o que virá.
No caso do Brasil, os manifestantes não alcançaram seus objetivos iniciais após os protestos de 2013. Na linha de eventos que provocaram a eleição de Jair Bolsonaro, esses protestos são um ponto importante.
A "Primavera da América Central" de 2015 que começou na Guatemala também se desenrolou na decepção de muitas pessoas que se uniram para se livrar do presidente.
A corrupção continua sendo um mal endêmico. Jimmy Morales, o presidente eleito após as manifestações, tornou-se um aliado de Trump.
Em Porto Rico, há também a ameaça dessa onda chegar ao Caribe. Há líderes políticos que mostram em público um comportamento muito parecido com o que o governador Rosselló mostrou em particular, na troca de mensagens.
Quando Rosselló finalmente deixar o cargo (algo que parece quase inevitável no momento), toda a energia investida em expulsá-lo pode sumir.
E um longo pavio poderia substituir o curto. O barril, porém, ainda estará cheio de pólvora. Ninguém sabe que direção Porto Rico pode seguir depois desse grande momento de ativismo político.
Mesmo assim, os exemplos na região são preocupantes. A possibilidade de o movimento dar lugar a um líder populista e reacionário é latente, embora não possa ser vista no meio dos protestos agora.
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