Descrição de chapéu The New York Times

Você pode ler o livro de Yuval Noah Harari em russo, exceto as partes sobre a Rússia

Publicação foi censurada, com menções aos combates na Ucrânia e na Crimeia removidas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ivan Nechepurenko e Alexandra Alter
Moscou | The New York Times

Andrei Chernikov, especialista em tecnologia da informação do oeste da Ucrânia, estava perto do final do livro "21 Lições para o Século 21", de Yuval Noah Harari, quando se deparou com algo que o interessava diretamente —uma descrição no capítulo "Pós-Verdade" sobre como o governo da Rússia em 2014 tentou esconder sua invasão da Ucrânia e a anexação da Crimeia.

Yuval Noah Harari, historiador e filósofo israelense
Yuval Noah Harari, historiador e filósofo israelense - Folhapress

Chernikov, 35, estava lendo uma cópia impressa do livro em ucraniano, mas quando ele mudou para a versão russa em e-book, em seu tablet, o mesmo capítulo continha material diferente.

Em vez de eventos na Crimeia, começava com uma análise das declarações do presidente Donald Trump para ilustrar a proliferação de notícias falsas no mundo moderno."

A diferença entre os textos nos idiomas ucraniano e russo expõe poderosamente as questões enunciadas", escreveu Chernikov em um post no Facebook que rapidamente se tornou viral.

Outras discrepâncias surgiram, causando um alvoroço na Ucrânia, na Rússia e em outros países. O jornal The New York Times descobriu que a versão russa do livro foi fortemente censurada, com menções aos combates na Ucrânia e na Crimeia removidas e críticas ao governo russo esmaecidas ou cortadas, entre outras alterações.

A versão russa não mencionou nenhuma das mudanças. Em um exemplo, a Rússia foi substituída pela Hungria como um país que está experimentando novos tipos de democracia não-liberal e ditadura.

As partes que descreviam a Rússia como um "país ideologicamente falido", onde "os oligarcas monopolizam a maior parte da riqueza e do poder" foram removidas, assim como a descrição do presidente russo Vladimir Putin como líder "sem uma visão de mundo global".

Para Chernikov, a omissão da invasão do seu país pela Rússia foi particularmente pungente.

"As pessoas que pereceram no leste da Ucrânia estão enterradas a 150 metros de distância de onde eu moro", disse ele em uma entrevista por telefone de sua casa em Ivano-Frankivsk.

"O que me preocupa é que o regime autoritário se implementou na Rússia integralmente."

Após o clamor, Harari tentou explicar o que aconteceu. Ele concordou em omitir as menções ao anúncio de Putin sobre a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, disse ele, considerando-o uma concessão necessária para tornar o livro acessível aos leitores russos.

"Eu realmente enfrentei um dilema sobre modificar esses exemplos e publicar o livro, ou deixá-los e não publicar", disse Harari.

"Eu nunca concordaria em escrever algo que não é verdade, e nunca concordaria em mudar a mensagem principal do livro."Ainda assim, ele ficou perturbado ao saber de outras mudanças que não aprovara.

Por exemplo, na dedicação do livro original, Harari faz referência a seu marido, observando que "Eu só sei escrever livros.

Ele faz todo o resto". Mas na tradução russa "marido" foi modificado para "parceiro".

"Se isso é verdade, estou realmente furioso", disse ele. "Eu sou abertamente gay. Eu percorro o mundo falando sobre isso."

Harari também ficou surpreso ao saber que sua descrição da agressão russa na Crimeia em outras seções do livro havia sido alterada.

Ele disse que entraria em contato com sua editora russa para se opor às mudanças que ele não autorizou, e teme que a atenção que o livro está atraindo possa aumentar o escrutínio.

A editora russa, Sindbad, se recusou a comentar, dizendo que seu principal editor está fora de Moscou e ficará indisponível por várias semanas.

Harari, um historiador e filósofo israelense, ganhou destaque com a tradução para o inglês de seu best-seller de 2014, "Sapiens: A Brief History of Humankind" (Sapiens: Uma Breve História da Humanidade).

Depois veio uma continuação, "Homo Deus: A Brief History of Tomorrow" (Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã) e então publicou "21 Lições para o Século 21", uma coletânea de ensaios que exploram os problemas tecnológicos e políticos que a humanidade terá de resolver nas próximas décadas.

Em uma resenha para o New York Times Book Review, Bill Gates chamou o livro de "fascinante" e elogiou Harari por provocar "uma conversa global crucial sobre como enfrentar os problemas do século 21".

Os trabalhos de Harari são publicados em mais de 50 idiomas, e ele detém os direitos mundiais de seus livros, o que lhe permite aprovar ou recusar pedidos de direitos de tradução.

Os editores estrangeiros muitas vezes fazem alterações ao traduzir livros, geralmente para torná-los mais acessíveis aos leitores de outros países ou idiomas. Às vezes, os editores censuram material delicado sem notificar os autores, que só descobrem as alterações quando os leitores as indicam.

Embora a censura tenha sido declarada ilegal na Rússia, a situação com o livro de Harari lembrou muitos dos métodos da era soviética.

Por exemplo, "Por Quem os Sinos Dobram", de Ernest Hemingway, foi publicado pela primeira vez em 1968, com pelo menos 20 cortes, segundo pesquisadores russos.

Mais recentemente, "Rocketman", filme lançado no começo deste ano baseado na vida de Elton John, teve cenas gays cortadas na versão russa, segundo críticos de cinema.

Harari disse que, em geral, ele é a favor de fazer mudanças a fim de atingir um público global, desde que essas mudanças não prejudiquem a essência de seus argumentos.

"Estamos vivendo em uma realidade mais complexa, e é importante alcançar pessoas em sociedades não democráticas", disse ele. "E para isso você tem que fazer concessões."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves  

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.