Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Itamaraty resiste a alinhamento com EUA em conferência de energia atômica da ONU

Na contramão da política do governo Bolsonaro, Brasil não endossou críticas de Washington ao Irã

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Berlim

Em movimento na contramão da política externa do governo Jair Bolsonaro (PSL), a delegação brasileira não se alinhou aos Estados Unidos durante a conferência da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), encerrada nesta sexta (20) em Viena.

Desde sua posse, o presidente reitera o que chama de apoio total às políticas do governo Donald Trump. Na Suíça, contudo, a delegação brasileira não endossou as críticas feitas pelos EUA ao Irã pelo ataque a instalações sauditas.

O país também reiterou sua posição independente em relação à política nuclear. Segue se recusando a assinar o protocolo adicional ao TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear), instrumento que permite um regime mais rígido de inspeções em instalações ligadas a programas nucleares.

Funcionários trabalham em instalação petrolífera que foi atingida por ataque na Arábia Saudita
Funcionários trabalham em instalação petrolífera que foi atingida por ataque na Arábia Saudita - Hamad l Mohammed/Reuters

O protocolo, de 1997, é visto pela diplomacia brasileira como um instrumento de pressão das potências nucleares e uma brecha para o vazamento de segredos industriais.

Além disso, ele não dá nada em troca –os EUA e Rússia, por exemplo, não são signatárias de um novo e mais restritivo tratado, o TPAN (Tratado de Proibição de Armas Nucleares).

Assinado pelo Brasil em 2017, o texto prevê o banimento total da bomba e deve ser analisado para ratificação pelo Congresso este ano. Ao longo da conferência da AIEA, houve discussões sobre a conveniência de ele substituir o TNP, de 1968, que será revisado no ano que vem.

Com isso, a área do desarmamento se firma como uma das poucas que não foi afetada pela guinada empregada pelo chanceler Ernesto Araújo no Itamaraty.

A manutenção de uma posição contrária à americana sempre foi defendida pela burocracia do Itamaraty que lida com a questão. A cúpula da Defesa e a ala militar no governo têm o mesmo entendimento.

Enviados americanos e israelenses já haviam ouvido o "não" brasileiro sobre mudança de posição na área nuclear. Segundo a Folha ouviu em Genebra, não houve pressão extra sobre a delegação.

No caso de Tel Aviv, a preocupação central era o Irã. O acirramento das tensões no Golfo Pérsico com o ataque às refinarias sauditas atribuído a Teerã fez o tema ser central nas conversas em Genebra, com troca de acusações de lado a lado.

O alinhamento aos EUA determinado por Bolsonaro já criou problemas com a área militar do governo. O presidente chegou a prometer uma base americana no Brasil e seu governo namorou a ideia de intervir militarmente na Venezuela, só para ser contido pelos fardados.

Araújo integra a chamada ala ideológica do governo, inspirada pelo escritor Olavo de Carvalho. Ela é comandada por aquele que diplomatas consideram o chanceler de fato, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e indicado pelo pai para ser embaixador do Brasil nos EUA.

Bolsonaro já deu declarações defendendo o poder dissuasório de armas nucleares, mas depois negou defender que o Brasil as tivessem. Integra também o grupo olavista na área externa o assessor presidencial Felipe Martins.

Os olavistas vinham prevalecendo recentemente sobre os militares no governo, mas entraram em acordo com eles acerca do caso venezuelano –sugerir uma anistia ao ditador Nicolás Maduro em caso de ele aceitar eleições, algo que não parece estar no horizonte.

O TNP vem sendo atacado por sua obsolescência, já que a proliferação nuclear seguiu. Índia, Paquistão e Coreia do Norte desenvolveram a bomba após sua adoção.

Além disso, novas tecnologias desenvolvidas pelas grandes potências ameaçam diretamente um dos pilares do texto, o desarmamento.

Desde que assumiu, em 2017, Trump renovou a doutrina nuclear americana, facilitando o emprego de armas táticas de menor potencial destrutivo –a serem usadas, por exemplo, contra tropas e bases, em contraposição ao armamento estratégico, que visa destruir grandes centros industriais e cidades.

Além disso, os EUA acusaram a Rússia de violar um dos mais simbólicos acordos nucleares do fim da Guerra Fria, que visava evitar a instalação de mísseis de alcance intermediário na Europa.

O Kremlin negou, mas Washington retirou-se do acordo, que foi encerrado neste ano e disparou o começo do que parece ser uma nova corrida armamentista entre os dois antigos adversários, com novos testes de armas americanas e anúncios de retaliação de Vladimir Putin.

A delegação brasileira em Viena foi liderada pela primeira vez, em 29 anos, por um ministro de Estado. No caso, não o chanceler pró-americano, mas o almirante Bento Albuquerque (Minas e Energia, que foi responsável pelo programa nuclear brasileiro).

Em seu discurso, ele disse que o Brasil quer aproveitar o fato de ter a quarta maior reserva de urânio do mundo e também dominar o ciclo de enriquecimento do mineral que dá origem ao combustível nuclear para ampliar sua participação no mercado.

Este é um desejo antigo do governo brasileiro, que esbarra em questões técnicas e também na suspeita que o enriquecimento provoca –o processo em ultracentrífugas pode tanto servir a propósitos médicos como, em alto grau, para fazer a bomba.

Albuquerque também reafirmou que o Brasil quer abrir o mercado nuclear, hoje um virtual monopólio da Marinha, para o setor privado.

O governo Michel Temer (MDB) já tinha plano semelhante, que sofreu resistência dos militares e também de setores de pesquisa, que hoje dominam a produção de material nucelar com fins medicinais.

Os almirantes são responsáveis desde 1979 pelo programa nuclear, que procurou também fazer a bomba até abdicar dela em conjunto com a Argentina, em 1985, após o fim da ditadura militar.

Hoje, a Força trabalhar num projeto de submarino nuclear com equipamentos franceses e reator brasileiro, mas o programa tem sofrido inúmeros atrasos devido à falta de verbas –o barco, que deveria ir ao mar no começo dos anos 2020, não ficará pronto antes de 2030.

O Brasil também deu apoio ao argentino Rafael Grossi para substituir o japonês Yukiya Amano, morto neste ano, como chefe da AIEA, na escolha que ocorrerá em outubro. Brasília e Buenos Aires têm um compreensivo acordo nuclear vigente desde 1994.


Os tratados nucleares

TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear) 
Assinado em 1968, passou a vigorar em 1970 com 189 países signatários. Determina que apenas as nações que explodiram a bomba atômica antes de 1967 —EUA, Rússia, Reino Unido, França e China— têm direito de possuir esse tipo de armamento.

TPAN (Tratado de Proibição de Armas Nuclerares) 
Aprovado por 122 países em 2017, inclui proibições de participação em atividades de armas nucleares. Estabelece que as nações não podem desenvolver armas do tipo em território nacional.

O jornalista viajou a convite do governo alemão

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que foi publicado, a conferência da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) ocorreu em Viena, e não em Genebra. O texto foi corrigido.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.