Para especialistas, manobra da senadora Añez na Bolívia é ilegítima

Opositora de Evo Morales se autoproclamou presidente interina

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São Paulo

Após a autoproclamação da senadora Jeanine Añez como presidente da Bolívia em uma sessão sem quórum no Congresso do país na última terça-feira (12), cientistas políticos ouvidos pela Folha afirmam que a posse dela é ilegítima.

Militar ajeita faixa presidencial na presidente autodeclarada da Bolívia, Janine Aiñez
Militar ajeita faixa presidencial na presidente autodeclarada da Bolívia, Janine Aiñez - Oscar Ortiz no Twitter

Para o diplomata Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior, Añez não poderia ter assumido a Presidência.

“O que aconteceu ali não foi o que está previsto na Constituição boliviana. Nem Câmara nem Senado tinham quórum. Não poderia ter havido a autoproclamação dela como presidente da República”, diz.

“Não quero entrar no debate sobre se foi um golpe de Estado ou não, mas a situação da Bolívia não é uma situação normal, e o governo brasileiro deveria ter aguardado para ver como evolui a situação interna antes de reconhecer [a senadora como presidente].”

A posição do diplomata é diferente da apresentada há dois dias, antes da autoproclamação de Añez, quando disse que “não houve golpe nenhum” no país. 

Segundo Barbosa, Evo também não respeitou a Constituição ao concorrer novamente à Presidência depois de ter perdido em 2016 um referendo que poderia permitir uma nova reeleição.

Para José Álvaro Moisés, professor de ciência política da USP, não existe hoje clareza sobre quem, do ponto de vista constitucional, tem direito de assumir a Presidência. “A situação coloca a Bolívia em um quadro de retrocesso na América Latina.”

Para o acadêmico, não há dúvidas de que o processo todo se tratou de um golpe. “Houve um pronunciamento militar que forçou a renúncia do presidente Evo Morales.”

Assim como Barbosa, ele aponta que Evo já havia infringido a Constituição boliviana ao desrespeitar o resultado do referendo. “A despeito dos erros que ele de fato tenha cometido, como a fraude na última eleição [detectada pela Organização dos Estados Americanos], ele sofreu um golpe”, diz.

“A administração do Evo é ambígua. Do ponto de vista econômico, vinha tendo bons resultados, mas ele adotou um caminho pelo qual havia uma autoimposição dele como líder permanente, e isso encontrou resistência na sociedade e na oposição, embora tenha havido uma posição favorável por parte da corte eleitoral [a uma nova candidatura de Evo]”.

Já o cientista político e colunista da Folha Demétrio Magnoli diz que Evo Morales sofreu um contragolpe, ou um golpe da oposição contra um primeiro golpe de Evo.

“O pronunciamento militar pedindo a renúncia de Evo indica um contragolpe. Já havia um golpe em câmera lenta conduzido por Evo contra as instituições democráticas”, diz. 

“Começou com uma tentativa de reeleição que violava um referendo e se consumou com irregularidades na eleição. A Bolívia já estava fora das regras do jogo democrático.”

Demétrio lembra que a senadora assumiu a Presidência em uma sessão sem quórum, porque, diz ele, os parlamentares não foram ao Congresso por decisão política do Evo. 

“Para ele, é importante estabelecer a narrativa de que houve um golpe, e houve. Quando você está fora da democracia, os governos caem por golpes.”

Segundo ele, as decisões de Brasil e Estados Unidos de reconhecer a Presidência da senadora Añez está “ligada à posição ideológica” dos governos Trump e Bolsonaro.

“Por outro lado, é uma decisão inevitável, dado o exílio de Evo. Ao ir para o México, ele dá sinais de que o realismo político manda aceitar a situação.” Magnoli afirma que o futuro do regime depende de qual ala da oposição ao ex-presidente vai prevalecer.

“Há hoje uma ala moderada, cujo líder é Carlos Mesa [que disputou a eleição de outubro contra Evo] e outra, extremista, de Luis Fernando Camacho. Se esta última empalmar o poder, é possível que a Bolívia rume para um regime autoritário”, afirma.

Para ele, o fator determinante para definir se as eleições bolivianas serão legítimas é a possibilidade de que o partido de Evo, o MAS (Movimento para o Socialismo), participe do pleito.

“O partido pode boicotar as eleições, mas é importante que ele não seja impedido de disputá-las, porque é uma força política legítima.”

O boliviano Gustavo Pedraza, que foi candidato a vice-presidente na chapa encabeçada por Carlos Mesa nas eleições de outubro, afirma que não houve golpe, “e sim uma renúncia provocada por uma rebelião popular”.

“Os cidadãos pediram novas eleições com outro tribunal eleitoral antes mesmo da auditoria da OEA. Quando se descobriu que o pleito foi um roubo, pediu a renúncia do presidente que foi o autor intelectual da fraude.”

O pronunciamento do comandante das Forças Armadas do país, Williams Kaliman, que pressionou Evo a renunciar, segundo Pedraza, foi motivado pela recusa dos militares em reprimir protestos.

Ele diz que a autoproclamação de Añez é legal e está amparada em um comunicado emitido pelo Tribunal Constitucional na terça-feira (12).

O texto afirma que não é necessária resolução do Congresso para que o vice-presidente assuma o cargo em caso de renúncia do mandatário. Cita como jurisprudência, porém, uma decisão do órgão proferida em 2001 e, portanto, anterior à atual Constituição boliviana, promulgada em 2009 durante a gestão de Evo.

Além de Evo e do vice-presidente, Álvaro García Linera, renunciaram também os presidentes da Câmara e do Senado bolivianos e o primeiro vice-presidente do Senado.

“Jeanine era a segunda vice-presidente do Senado, a próxima na linha sucessória. Pela interpretação do Tribunal Constitucional, a sessão que a proclamou não precisava de quórum. Sua missão é convocar eleições limpas com a participação de todos os partidos.”

Os episódios de violência como a invasão da casa de Evo em Cochabamba, segundo ele, “são atos de uma turba sem líder e isso nós não aprovamos”.

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