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Saída de Trump de cúpula evidencia crise existencial da Otan

China é citada como ameaça à aliança militar na revisão de prioridades, mas consenso passa longe do encontro

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São Paulo

Em mais um episódio no qual abandonou uma reunião internacional de forma abrupta, o presidente Donald Trump deixou evidente a crise existencial que abala a maior aliança militar do mundo, a Otan.

Com 70 anos completados neste ano, a Organização do Tratado do Atlântico Norte fez sua reunião de líderes em Watford (Reino Unido) durante dois dias.

O saldo: uma promessa de revisão profunda de prioridades, embora não haja consenso sobre elas, e Trump ofendido por um vídeo no qual outros presentes aparentemente zombavam de suas entrevistas coletivas extensas.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, recebe o presidente americano, Donald Trump, na reunião da Otan em Watford, perto de Londres
O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, recebe o presidente americano, Donald Trump, na reunião da Otan em Watford, perto de Londres - Peter Nicholls/AFP

Após a divulgação do vídeo, o americano chamou o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, de “duas caras”. Outro integrante da conversa ocorrida em um jantar no palácio de Buckingham, o premiê britânico Boris Johnson, negou que o grupo estivesse falando sobre Trump.

O estrago, contudo, estava feito, e ele cancelou a última entrevista que daria na tarde desta quarta (4). Não é algo inédito: Trump deixou um encontro do G7 no Canadá, no ano passado, desmontando um comunicado conjunto que não lhe agradava —deixando o mesmo Trudeau, o anfitrião, em uma saia justa.

Na véspera, Trump e o francês Emmanuel Macron haviam protagonizado uma das mais constrangedoras aparições públicas de presidentes dos seus países na história.

O americano criticou diretamente o francês por ter dito em uma entrevista à revista The Economist que a Otan estava em “morte cerebral” pela falta de liderança em Washington. Macron insistiu no seu ponto de vista. As imagens do evento são de desconforto extremo de ambos os lados.

Não foi só nisso que ambos discordaram. Paris não perdoa o aval americano à invasão que a Turquia, membro da Otan, promoveu no norte da Síria, criando uma zona tampão entre facções curdas.

Macron considera os curdos aliados, como Trump achava até os trair em outubro, e queria pressionar o presidente Recep Tayyp Erdogan sobre o tema.

Os EUA tinham seus próprios motivos de desgosto com os turcos, no caso a compra de sofisticados sistemas antiaéreos russos S-400, que teoricamente podem revelar fraquezas em seus aviões de combate.

Americanos retaliaram a aquisição ao retirar a Turquia do programa de produção do caça de nova geração F-35. Trump e Erdogan conversaram numa reunião bilateral, mas para não dar munição ao francês o americano evitou críticas ao turco. Apenas falaram ter discutido Síria e as ações turcas no país.

Único membro da aliança no Oriente Médio, a Turquia tem se afastado do Ocidente e hoje negocia sua posição na Síria basicamente com aquele que nominalmente é o maior inimigo dos 29 países da Otan: a Rússia de Vladimir Putin.

Mesmo isso não é consensual. Macron afirmou em dado momento que nem todos os presentes concordavam com a ideia de que Putin era um adversário, mas acabou recuando e incluindo a Rússia e o terrorismo na lista de ameaças com as quais tem de lidar.

A russofilia de Macron, que não é compartilhada pelos membros ex-comunistas da Otan e pelo Reino Unido, por exemplo, tem algumas razões bem concretas: os grandes interesses franceses na exploração do gás natural do Ártico, onde a empresa Total é parceira da estatal russa Gazprom nos campos de Iamal.

Seu recuo não foi o único. Sob pressão, Erdogan também teve de desistir da ameaça de bloquear a criação de um novo plano de defesa da região dos Estados Bálticos e da Polônia, integrantes da Otan que mais se sentem ameaçados pelo Kremlin.

Tudo isso explicita a falta de rumos claros da aliança, criada para combater a ameaça da União Soviética e de seus aliados da antiga Cortina de Ferro.

Como é praxe quando reuniões do tipo são inconclusivas, foi criado um grupo de trabalho, sob a liderança do secretário-geral da aliança, o norueguês Jens Stoltenberg. Ele deverá rever as prioridades estratégicas da Otan, ouvindo especialistas militares e políticos.

O trabalho deverá durar um ano, sob medida para saber se a Otan terá ou não de conviver mais quatro anos com Trump, que buscará a reeleição em 2020.

Desde que assumiu, o americano é pródigo em ataques à instituição, que chamou de obsoleta —nisso, ele não está exatamente errado.

O próprio Soltenberg elencou não só o terrorismo e a Rússia como ameaças, mas pela primeira vez falou na China, que tem adensado sua parceria militar com Moscou.

​Putin anunciou em setembro que a Rússia iria auxiliar Pequim a construir um sistema de alerta antecipado de ataques com mísseis balísticos intercontinentais, algo que apenas Moscou e Washington possuem de forma mais ou menos efetiva.

Os chineses já usam muito material bélico russo, além de modelos próprios copiados dos originais do vizinho. Caças e bombardeiros dos dois países têm feito inéditas patrulhas conjuntas e, em agosto, o Kremlin anunciou a preparação de um novo acordo militar entre os países.

Essa inclusão chinesa na lista de adversários tende a agradar os EUA de Trump, que vivem uma complexa guerra comercial com o gigante comunista asiático.

Na prática, a Otan tem poucos pontos de atrito estratégicos com a China. A França, com forte presença militar na África, é quem mais olha com preocupação a expansão de Pequim na região. Da forma com que a questão está colocada, ela diz mais respeito ao eventual reforço que Moscou poderá ter ao se aproximar dos chineses.

A outra crítica recorrente de Trump é sobre o gasto militar dos integrantes da aliança. Apenas sete países, EUA à frente, cumprem a meta prevista de dispêndio de 2% do Produto Interno Bruto no setor.

Quatro desses “bom pagadores” são ex-comunistas com temor direto do que acreditam ser imperialismo russo, provado em ações como a guerra na Geórgia (2009) e a anexação da Crimeia (2014).

Aqui vale um pouco a teoria do ovo e da galinha: Putin foi a campo para frear a expansão a leste da Otan, que vinha em ritmo acelerado. Ao fim, a desconfiança mútua só fez crescer e está justificada de lado a lado.

O americano também diz que paga a conta pelas operações da Otan, o que não é preciso. Em 2018, Washington colocou US$ 30 bilhões dos US$ 643 bilhões que gastou em defesa na aliança.


​O QUE É A OTAN?

  • A Organização do Tratado do Atlântico Norte é uma aliança de defesa regional criada em 1949 como uma resposta à expansão da presença militar da URSS na Europa Central e do Leste
  • Sua função mais importante é garantir que, caso um membro seja atacado, os demais saiam em sua defesa
  • Com o fim da URSS em 1991, a aliança perdeu seu objetivo principal e se tornou fórum de cooperação militar 
  • Durante o governo de Bill Clinton (1993 - 2001), os EUA lideraram iniciativa para aumentar o número de membros como forma de integrar ex-soviéticos, como a República Tcheca, a Hungria e a Polônia
  • Estônia, Letônia e Lituânia entraram na Otan em 2004. A adesão ao bloco recebe grande apoio entre elas, que buscam na aliança garantias contra uma eventual pressão russa

História da Otan

1949
12 países assinam o Tratado do Atlântico Norte

1956 
Primeira crise interna, com EUA se opõe à intervenção francobritânica na crise de Suez

1966 
França deixa a estrutura de comando da Otan; país só volta em 2009

2001 
Em resposta ao 11 de Setembro, é invocado pela 1ª vez o artigo de defesa mútua

2003 
Países-membros vetam Otan na Guerra do Iraque

2004 
Expansão ao leste, com 7 países ex-comunistas; número de membros passa a 26

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