Descrição de chapéu The New York Times

Videogames e bate-papos online se tornam 'áreas de caça' para predadores sexuais

Criminosos induzem crianças a compartilharem fotos explícitas

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Nellie Bowles Michael H. Keller
The New York Times

Quando o filho de 13 anos de idade de Kate começou a jogar "Minecraft" e "Fortnite", ela não se preocupou. Ele jogava numa sala onde ela podia ficar de olho nele.

Mas seis semanas mais tarde Kate viu algo aparecer na tela que a deixou horrorizada: um vídeo de bestialidade envolvendo um menino pequeno.

Chocada, ela vasculhou a conta de seu filho na Discord, plataforma onde os gamers podem bater papo enquanto estão jogando.

As conversas estavam cheias de linguagem explícita e imagens de atos sexuais postadas por outras pessoas.

Quando ela interrogou seu filho sobre isso, no mês passado, ele começou a chorar.

“Acho que é um peso enorme que sai das costas de uma criança quando alguém intervém e fala: ‘Na realidade isto daqui é abuso infantil. Você está sendo abusado. Você é a vítima aqui’”, disse Kate, que pediu para não ser identificada por seu nome completo, para proteger a privacidade de sua família.

Os predadores sexuais encontraram uma porta fácil de entrada na vida de crianças e adolescentes: estão conhecendo as crianças online, por meio de videogames com múltiplos jogadores e de aplicativos de bate-papo, criando relações virtuais com suas vítimas em suas próprias casas.

Os criminosos iniciam uma conversa e aos poucos vão induzindo a criança a confiar neles. Com frequência, fazem-se passar por crianças.

Seu objetivo geralmente é induzir as crianças a compartilharem fotos e vídeos sexualmente explícitos delas próprias, que eles então usam para chantageá-las e obrigá-las a lhes mandar cada vez mais imagens, cada vez mais explícitas e violentas.

Relatos sobre abuso estão emergindo com frequência inusitada de todas as partes dos EUA. Alguns criminosos aliciam centenas ou até milhares de vítimas, conforme revelam uma revisão de processos judiciais, registros de tribunais, boletins policiais e estudos acadêmicos.

O New York Times denunciou neste ano que a indústria da tecnologia até agora fez esforços apenas superficiais para combater uma explosão de imagens de abuso sexual infantil na internet.

O jornal descobriu que essa reação perturbadora se estende aos mundos dos games e chats online.

Existem ferramentas para detectar conteúdos de abuso previamente identificados, mas procurar imagens novas —como as que são extorquidas em tempo real de gamers adolescentes e crianças— é mais difícil.

Alguns produtos têm sistemas de detecção embutidos, mas existem poucos incentivos legais para as empresas combaterem o problema, já que elas praticamente não são responsabilizadas por conteúdos ilegais postados em seus sites.

Seis anos atrás um pouco mais de 50 denúncias de crimes da modalidade conhecida como “sextorsão” foram encaminhadas ao centro federal, situado num subúrbio de Washington, que rastreia o abuso sexual infantil online.

No ano ano passado, o centro recebeu mais de 1.500 denúncias. E as autoridades acreditam que a imensa maioria dos casos de sextorsão, ou extorsão sexual, nunca chega a ser denunciada.

Houve alguns casos em que criminosos chegaram a ser detidos. Um homem da Califórnia foi sentenciado em maio a 14 anos de prisão por coagir uma menina de 11 anos “a produzir pornografia infantil”, depois de conhecê-la por meio do game online "Clash of the Clans".

Um homem do Illinois foi sentenciado a 15 anos de prisão em 2017 depois de ameaçar estuprar dois garotos no Massachusetts —dizendo ainda que mataria um deles— que havia conhecido no Xbox Live.

Matt Wright, um agente especial do Departamento de Segurança Interna, explicou: “A primeira ameaça feita é ‘se você não fizer tal coisa, vou postar suas fotos nas redes sociais. E, por sinal, tenho uma lista de todas as pessoas da sua família e vou mandar as fotos para todas elas’".

Se a criança não manda a foto, o sujeito diz: "Tenho seu endereço aqui, é x —ou seja, eu sei onde você mora. Vou aí matar sua família”.

O trauma decorrente pode ser demais para as jovens vítimas. Um estudo do FBI que analisou uma amostra de casos de sextorsão concluiu que mais de um quarto dos casos levaram a suicídios ou tentativas de suicídio.

Faz sentido que muitos predadores se dirijam ao mundo dos games online. Segundo o Pew Research Center, 97% dos garotos adolescentes dos EUA e 83% das meninas jogam videogames.

Muitos estados americanos encaram os games online como um esporte de equipe. Faculdades oferecem bolsas de estudos para os melhores jogadores, e algumas cidades estão correndo para criar times profissionais.

O setor é altamente lucrativo, tendo gerado receita de mais de US$ 43 bilhões nos EUA no ano passado.

Há muitas maneiras de os gamers se conhecerem online. Eles podem utilizar os dispositivos de chat embutidos em consoles como Xbox e serviços como Steam ou podem entrar em contato em sites como Discord e Twitch.

Os games tornaram-se altamente sociais, e desenvolver relacionamentos com desconhecidos nesses games é normal.

“Esses espaços virtuais são essencialmente terrenos de caça de predadores”, disse Mary Anne Franks, professora da Escola de Direito da Universidade de Miami e presidente da ONG Cyber Civil Rights Initiative, que combate os abusos online.

No outono deste ano o FBI lançou uma campanha de conscientização nas escolas de ensino fundamental e médio para incentivar crianças a procurar ajuda quando se virem encurraladas numa situação sexual em que estão sendo exploradas.

“Mesmo que você tenha aceito dinheiro, um crédito num game ou outra coisa, não é você quem vai ter problemas”, explicam os materiais da campanha.

Tela do jogo "Fortnite" em computador no qual policial foi em busca dos 'predadores', em Nova Jersey - Kholood Eid/The New York Times

Indo atrás dos predadores

Os departamentos de polícia de Nova Jersey foram inundados de telefonemas de pais e professores alarmados com os pedófilos à espreita de crianças em salas de bate-papo e sites de games.

Por isso, no ano passado funcionários policiais de todo o estado ocuparam um prédio perto do litoral de Jersey e começaram a participar de chats, fazendo-se passar por crianças.

Em menos de uma semana, eles prenderam 24 pessoas.

As autoridades repetiram a dose, dessa vez atuando em Bergen County, um subúrbio próximo de Nova York. Fizeram 17 prisões. E lançaram a operação novamente, dessa vez em Somerset County, onde prenderam 19 pessoas. Um dos réus foi sentenciado à prisão. Os outros ainda estão sendo processados.

Depois da operação sigilosa, a polícia esperava descobrir um padrão de atuação dos predadores que pudesse ajudá-la em investigações futuras. Mas não identificaram nenhum padrão comum a todos.

Os predadores detidos eram pessoas de todos os segmentos da sociedade.

Quando anunciaram as prisões, as autoridades destacaram o "Fortnite", "Minecraft" e "Roblox" como sendo plataformas onde os predadores iniciam bate-papos com crianças, para então passar para aplicativos de chat. Quase todos os detidos tinham combinado encontros cara a cara com suas vítimas.

Em um caso separado em Ohio, o abuso digital de um menino levou ao seu abuso físico. Segundo documentos do tribunal, o acusado, Jason Gmoser, incentivava meninos a mostrar seus genitais enquanto jogavam no PlayStation.

Gmoser disse a investigadores da polícia em 2014 que passou anos interagindo com um menino de 8 anos.

Ele viajou ao Missouri para visitar o menino e sua família, os encheu de presentes e pagou algumas de suas contas. Ele contou que abusou sexualmente do menino em pelo menos uma dessas viagens.

Gmoser agora cumpre pena de prisão vitalícia por ter comandado um site na dark web de abuso sexual de crianças.

Em 2018, três homens de partes diferentes do país foram condenados por comandarem uma rede de sextorsão durante anos, aliciando centenas de crianças a partir de plataformas sociais e de streaming de vídeo.

Em outro caso, uma menina no Tennessee pensou que tivesse feito uma amiga no Kik Messenger. Elas bateram papo por seis meses.

Depois que a adolescente compartilhou uma foto sua parcialmente nua, a “amiga” adotou tom ameaçador e exigiu que a adolescente se filmasse realizando atos sexuais explícitos.

A garota contou à sua mãe, que chamou a polícia.

A foto nunca chegou a ser compartilhada publicamente, mas, entrevistada pelo NYT, a menina disse que o que aconteceu a deixou marcada até hoje, anos mais tarde.

“Durante muito tempo pensei que havia algo de errado comigo ou que eu era uma má pessoa”, comentou. “Agora que cheguei à faculdade, conversei sobre isso com minhas amigas e muitas delas falaram ‘comigo aconteceu exatamente a mesma coisa’.”

Uma indústria sem respostas

Há algumas proteções aparentemente simples contra predadores online, mas existem obstáculos logísticos, financeiros e ligados à cultura dos games.

As empresas poderiam exigir a identificação dos jogadores e a aprovação dos pais para garantir que os games fossem jogados por pessoas da mesma idade.

Mas muitos gamers resistem à ideia de abrir mão do anonimato.

A Microsoft, a quem pertencem o Xbox e o game altamente popular "Minecraft", disse que no início de 2020 vai lançar um software gratuito que é capaz de reconhecer algumas formas de aliciamento e sextorsão.

Marc-Antoine Durand, executivo operacional chefe do Yubo, um aplicativo de videochat baseado na França e popular entre adolescentes, disse que seu app se precavê contra comportamentos de aliciamento com softwares da firma canadense Two Hat Security.

O Yubo desabilita as contas quando identifica uma discrepância de idade entre usuários; em muitos casos, exige que os usuários forneçam um documento de identidade emitido pelo governo.

Mas os usuários muitas vezes resistem a mostrar um documento, e muitas crianças não possuem documento de identidade.

Uma porta-voz do Facebook disse que a empresa já fez vários esforços para separar adultos de crianças, incluindo limitar como os adultos podem se conectar e trocar mensagens com crianças.

Mas o NYT conseguiu localizar menores de idade, olhando para as listas de amigos de usuários e para atividades em páginas frequentadas por crianças.

O Instagram, que pertence ao Facebook, permitia que seus usuários mandassem mensagens particulares a qualquer pessoa, e um repórter do NYT conseguiu contatar e bater papo com vídeo com uma menina de 13 anos que tinha conta particular no app (a menina e seus pais tinham autorizado o jornal a realizar o teste).

Depois que o NYT perguntou sobra sua política em relação às mensagens, na quarta-feira (4) o Instagram anunciou a adoção de novos dispositivos que permitirão a usuários bloquear mensagens de pessoas que eles não seguem.

A empresa disse que vai exigir que os usuários informem sua idade quando se cadastram.

Outras empresas adotaram uma abordagem menos rígida, citando preocupações com a privacidade de usuários.

O Discord disse que escaneia imagens para flagrar materiais conhecidamente ilegais e que seus moderadores reveem chats considerados de alto risco.

Mas a empresa não monitora conversas automaticamente para flagrar possível aliciamento, sugerindo que isso constituiria uma violação de privacidade e não teria resultados certeiros.

Algumas das maiores empresas de games informaram pouco ou nada sobre suas práticas. A Epic Games, criadora do "Fortnite", que tem cerca de 250 milhões de usuários, não respondeu a várias mensagens pedindo declarações.

A Sony, fabricante do PlayStation, que neste ano teve quase 100 milhões de usuários mensais ativos, apontou para seus tutoriais sobre controles parentais e suas ferramentas que possibilitam aos usuários denunciar comportamentos abusivos.

A solução à qual voltam muitos desenvolvedores de games e muitos especialistas em segurança online é que os pais precisam saber o que seus filhos estão jogando e as crianças precisam conhecer as ferramentas disponíveis para elas.

Às vezes isso significa bloquear usuários e fechar funções de chat. Às vezes significa monitorar os games enquanto estão sendo jogados.

Mas Kristy Custer, diretora do colégio Complete High School Maize, no Kansas, que ajudou a redigir o currículo usado por muitas equipes colegiais de esportes eletrônicos, disse que os pais devem reagir com cautela quando seus filhos contam que tiveram contato com predadores online.

Castigar as crianças —por exemplo, proibindo seu acesso a videogames ou redes sociais— pode ter efeito inverso ao desejado e acabar levando-as a procurar lugares ainda mais perigosos para suas atividades online.

“Com isso você terá feito exatamente o que o predador queria, empurrando seus filhos para um lugar mais escuro e secreto.”

Tradução de Clara Allain

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