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Protestos pelo mundo podem retornar com intensidade igual ou maior

É provável estarmos diante de um ciclo de mobilizações, cujos perfis ainda não somos capazes de identificar

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Julio Echeverría
Latino América 21

As mobilizações e os conflitos que surgiram ao longo de 2019 deixam uma sensação de surpresa e perplexidade, surpreendem por sua contundência, por seu caráter contestatório, por sua violência e radicalismo. Seu surgimento em cascata, em diferentes cidades e regiões do mundo, torna a cena global o teatro dos acontecimentos.

Estamos diante de um novo ciclo de intensificação da globalização? O radicalismo dos conflitos anuncia a entrada em uma nova fase mais intensa de integração mundial, apesar das reclamações dos nacionalismos e do localismo de muitos processos sociopolíticos? Essas expressões são novas formas de resistência a algo que ainda não se pode entrever com clareza e que essa nova tendência expressa?

Se bem que cada conflito obedeça a conotações próprias, todos aparecem como movimentos antissistema, por interpelarem valores, instituições e lógicas econômicas.

Suas agendas são diferenciadas: em alguns casos, se trata de uma resistência a ajustes econômicos (Equador); em outros, de exigências de justiça distributiva (Chile); apelos por autonomia regional (Catalunha); ou apelos pela transparência no funcionamento das instituições democráticas (Bolívia); sua eclosão aparece em distintas e distantes latitudes, Hong Kong, Líbano, Turquia, Paris.

Trata-se de mobilizações que aparentemente não são identificáveis por suas agendas mas sim por suas formas de impugnação e por seus desenlaces; todos os casos parecem ser conflitos que não têm soluções viáveis a curto prazo e que poderiam regressar a estados de latência prolongados.

Ainda assim, percebe-se também que os protestos poderiam retornar com intensidade igual ou maior. É provável que estejamos diante de um ciclo mundial de mobilizações, cujos perfis ainda não somos capazes de identificar com clareza.

A recorrência mundial dos conflitos nos traz a necessidade de reconhecer linhas comuns e nos expõe a um cenário de mudança de época que está fortemente relacionado a realidades emergentes como a inovação tecnológica ou a gravidade da crise ambiental, que incidem fortemente nessa escala e nível.

Duas linhas de reflexão se tornam necessárias: a primeira trata das determinações causais, a segunda indaga sobre as motivações dos agentes, sobre o sentido e a semântica que se pode derivar dessas mudanças de estrutura.

As determinações causais têm a ver com transformações induzidas por tentativas de conduzir a economia mundial em um contexto de crise ambiental grave e de transformação tecnológica colossal, que redefine os processos produtivos mediante inovações na automação, robotização e inteligência artificial; uma tensão criada pelo acúmulo excessivo de capital pelo setor financeiro, que encontra sérias dificuldades para se enquadrar a economias que caminham com dificuldade rumo à consolidação dessas novas tendências; dinâmicas que em seu conjunto geraram exclusão de amplos setores da força produtiva, ou os condenaram a tarefas altamente precárias e tendentes à eliminação.

São as classes médias mundiais as principais afetadas; setores que registram níveis relativamente elevados de preparo profissional, mas não encontram canais de inserção em mercados de trabalho que também tendem a se redefinir radicalmente.

A inovação tecnológica nos campos da informação e da comunicação funciona como “dinâmica estruturante” dessa nova globalização, e é o motor das demais inovações; não só torna mais eficientes os processos produtivos como acelera os fluxos de “politicidade” e de comunicação.

A segunda linha de reflexão nos leva a pensar como essa transformação tecnológica está sendo enfrentada, consumida, assimilada; aqui nos deparamos com uma enorme ambivalência; o agente social se encontra em uma nova plataforma comunicacional que condiciona suas dinâmicas de percepção e elaboração discursiva; vive a comunicação como um efeito de imediatismo e de aceleração que lhe permite “estar com os outros”, compartilhar percepções, emoções, mas ao mesmo tempo exacerba seu narcisismo, uma tensão que contrasta com a simulação de comunidade que as redes sociais anunciam e que termina por produzir insatisfação e desencanto; o conflito derivado da alta exposição à comunicação tecnologicamente induzida emerge como indisposição à comunicação, no exato momento em que a comunicação com o outro finalmente pareceria estar ao alcance, o que produz um efeito de “retorno às ruas”, ao cenário do contato efetivo e real, à realização na “comunidade efetiva”.

As redes sociais são agora o principal meio de comunicação, de mobilização, de criação de narrativas, de falsificação de verdades; as “fake news” são armas midiáticas de atemorização do adversário, pequenas escaramuças de terrorismo online; são o ponto máximo da virtualização do discurso, porque se sustentam sobre apoios precários de verossimilhança mas, mesmo assim, produzem efeitos reais, de transformação nas formas de percepção, de elaboração e de ação.

A nova globalização torna patente aquilo que já se via: uma imagem de futuro imprecisa e ameaçadora e uma necessidade de regressar ao passado, de viver em suas certezas e em suas semânticas. A dinâmica de conflito parece não conseguir desnudar passado e futuro, e, por não fazê-lo, o presente emerge como gerador de mal-estar e desassossego. Boa parte da revolta e do conflito reflete esse não querer permanecer em uma condição de extrema incerteza.

O paradoxo contemporâneo poderia ser expresso assim: a racionalidade econômica, os equilíbrios macrofiscais ou a necessidade de enfrentar a crise aparecem como geradores de inequidade e exclusão, quando poderiam ser geradores de um novo pacto social, que conduza à redução da pobreza e da inequidade, que promova novas condições para o desenvolvimento sustentável do planeta.

A lógica do antagonismo não é suficiente, e tampouco a da hegemonia ou da autonomia que entram em jogo no conflituoso cenário contemporâneo; estas pareceriam ser formas às quais acorreram os movimentos sociais que caracterizaram fases anteriores da globalização; a ação coletiva terá capacidade de incidência nessa nova fase, e será formada por movimentos de massa, pacíficos mas intransigentes em sua capacidade de impacto, e isso passa por depurar suas formas de impugnação.

Julio Echeverría é sociólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Equador (Quito), doutor em sociologia pela Università degli Studi di Trento (Itália) e especialista em análise política e institucional, sociologia da cultura e urbanismo.

 www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

 Latinoamérica21, tradução de Paulo Migliacci

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