Na crise global do coronavírus, o continente africano é sistematicamente apresentado como incapaz de se defender e dependente de ajuda internacional.
Os países da região apresentam sérias limitações, mas a experiência no combate a epidemias não pode ser menosprezada. Serra Leoa, Nigéria e nações da África Central enfrentaram o ebola. As da África Austral formaram gerações de especialistas em Aids.
No início do mês, porém, cientistas franceses desencadearam uma polêmica ao declararem que eventuais vacinas contra a Covid-19 deveriam ser testadas primeiro na África, “um pouco como foi feito para certos estudos sobre Aids ou com prostitutas”.
O ex-jogador de futebol Didier Drogba, por anos astro do Chelsea, respondeu nas redes sociais que os africanos não são ratos de laboratório.
A África obviamente também sofre com a pandemia, mas os efeitos do vírus não atingem a região de maneira uniforme. Cada país tem sua história, e os contrastes podem ser ainda maiores do que em outros continentes ou lugares de proporções continentais.
Três nações que dominam o imaginário brasileiro sobre a África —Angola, África do Sul e Moçambique— passam por experiências distintas.
Angola estava desde o começo como um dos países mais expostos ao vírus devido ao alto risco de importação de casos oriundos da China. Dos mais de 1 milhão de chineses que residem na África, 250 mil se estabeleceram no país.
A ameaça se tornou ainda maior quando a pandemia atingiu a Europa e particularmente Portugal. A conexão Luanda-Lisboa é a principal porta de Angola para o mundo.
Um decreto impôs confinamento rígido ao país, limitando consideravelmente deslocamentos, reuniões e atividades públicas, mas, na prática, o governo quer sobretudo isolar Luanda, a cidade que mais cresce na África.
Nos seus infinitos musseques, como são conhecidas as regiões urbanas mais carentes, havia o risco de a transmissão comunitária se propagar de forma descontrolada.
Na ausência de um sistema de saúde organizado, o governo do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), no poder desde a independência, recorreu ao Exército, um dos mais equipados da região, e ao serviço de inteligência, formado pelo paranoico regime da Alemanha Oriental nos anos 1980.
O resultado é uma quarentena agressiva, com relatos em redes sociais e na mídia portuguesa de episódios de violência cometidos por forças de segurança.
Ninguém sabe se essa solução policialesca vai vingar. Mas os angolanos já reconhecem o cheiro dos anos da guerra e da violência política.
Por fim, na última segunda (6), relatório da União Africana projetou que cerca de 20 milhões de empregos, tanto formais quanto informais, estão ameaçados no continente caso a crise se estenda.
Segundo o estudo, países que dependem de petróleo, como Angola, devem ser mais duramente atingidos.
Também no sul da África, Moçambique já tinha problemas de sobra quando o coronavírus começou a dar as caras. Uma insurgência com ramificações islamitas ganha terreno no norte do país. Outro movimento paramilitar, liderado por dissidentes da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), a histórica formação de oposição, atrasa a resolução do conflito armado.
Escândalos internacionais de corrupção e desastres ambientais —dois ciclones arrasaram o país em 2019— deixaram a população sem dinheiro, comida e trabalho.
Enquanto isso, os governantes da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) se agarram ao sonho dos recursos naturais: nos últimos anos, multinacionais anunciaram investimentos colossais no setor do gás natural.
A percepção de que o Estado não dispunha de meios para lidar com a crise deixou o presidente Filipe Nyusi em negação. Ele passou as primeiras semanas tentando minimizar os casos de transmissão comunitária.
A ideia de fechar fronteiras era descartada por representar um suicídio político: a troca comercial com a África do Sul é o balão de oxigênio do país.
Tudo mudou no final de março, quando o país vizinho declarou guerra ao coronavírus.
Pragmático, o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, não quer acabar como seus predecessores, Jacob Zuma e Thabo Mbeki, lembrados por terem minimizado a Aids.
O governo atual declarou quarentena total antes mesmo do registro da primeira morte no país, impôs medidas drásticas e lançou iniciativas como minivans equipadas com laboratório para testes rápidos.
Além de ter estendido na quinta-feira (9) o lockdown no país por mais duas semanas, Ramaphosa também disponibilizou um fundo de US$ 2,2 bilhões (R$ 11,24 bilhões) para ajudar pessoas incapazes de trabalhar e, assim, tentar evitar a perda de empregos.
A reação rápida fez da África do Sul um modelo para o sul global, ainda que as denúncias de que tem sido usada violência policial para garantir o cumprimento das restrições também sejam comuns no país.
Outro motivo para a resposta contundente deve-se aos números, uma vez que a África do Sul lidera o ranking de casos de Covid-19 confirmados no continente (2.003 até a tarde deste sábado, 11). A expectativa é que as cifras subam quando o país passar a fazer testes em massa.
Se as ações para conter a proliferação do vírus animam os sul-africanos, elas são uma tragédia para os vizinhos moçambicanos.
Uma vez decretado o fechamento das fronteiras, milhares de migrantes, muitos dos quais possivelmente infectados, regressaram e se espalharam pelo país, inclusive nas regiões mais abandonadas do norte, onde a elite da capital, Maputo, não apita quase nada.
Casos começaram a pipocar por todo lado, inclusive em Cabo Delgado. O sonho do gás natural está virando rapidamente um pesadelo.
A empresa francesa Total anunciou que havia casos confirmados de coronavírus em seu quadro de funcionários, e a americana Exxon postergou a decisão final de investir em Moçambique, agora sob estado de emergência.
A história da pandemia nesses diferentes países ainda está por ser contada, mas a de Moçambique, por uma série de circunstâncias, já é possível especular: será calamitosa.
20 milhões
de empregos, tanto formais quanto informais, estão ameaçados no continente caso a crise se estenda, segundo projeção de um relatório da União Africana
US$ 2,2 bilhões
é o valor de um fundo anunciado pelo governo da África do Sul para ajudar pessoas incapazes de trabalhar durante a quarentena
250 mil
dos mais de 1 milhão de chineses que vivem na África residem em Angola
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