Descrição de chapéu Venezuela

Parte da oposição negocia com Maduro para participar das eleições, diz Turquia

Ancara tem mediado as conversas na Venezuela; possível participação no pleito divide opositores

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BAURU (SP)

Pelo menos dois dos principais nomes da oposição venezuelana estão negociando com o ditador Nicolás Maduro para participar das próximas eleições legislativas sob a mediação da Turquia, de acordo com um anúncio feito pelo ministro das Relações Exteriores turco, Mevlut Cavusoglu.

Segundo o chanceler, Henrique Capriles (ex-governador do estado de Miranda e duas vezes candidato à Presidência da Venezuela) e o parlamentar Stalin González têm liderado discretamente um esforço para garantir a presença de opositores nas eleições marcadas para dezembro.

"A estabilidade e a paz da Venezuela são importantes para nós. Estamos felizes em ver que a oposição e o governo se aproximam do acordo", disse Cavusoglu, nesta terça-feira (1º). “A presença de observadores externos é uma das condições, e essas condições foram aceitas por Maduro.”

O chanceler turco, Mevlut Cavusoglu (à esq.), cumprimenta o ditador venezuelano, Nicolás Maduro, no Palácio de Miraflores, em Caracas - Palácio de Miraflores/Divulgação - 18.ago.20/via Reuters

A negociação, entretanto, viola um acordo firmado há um mês por 27 partidos de oposição para boicotar o pleito. De acordo com o documento, participar do processo eleitoral seria "colaborar com a estratégia da ditadura".

Os partidos de Capriles e González —Primeiro Justiça e Um Novo Tempo, respectivamente— estão entre os signatários do texto e fazem parte de um grupo conhecido como G4, formado pelas quatro principais legendas críticas a Maduro.

Nas redes sociais, Capriles negou que esteja negociando com o regime venezuelano. "Falar e negociar não são a mesma coisa, a menos que você queira manipular e mentir", escreveu. "O apropriado é falar com todos que nos aproximam de uma solução crível."

Para Capriles, "falar com um membro da comunidade internacional é normal quando você acredita em política e democracia". Na publicação, ele acrescentou uma foto do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, em um aperto de mãos com seu homólogo americano, Donald Trump.

González, também mencionado pelo ministro turco, disse que tentará encontrar uma solução para a crise "tantas vezes quanto necessárias".

"Se uma negociação impedir que este conflito se intensifique e se torne mais doloroso para os venezuelanos, farei isso quantas vezes for apropriado."

Para o parlamentar, "o modelo chavista falhou" e "o sofrimento dos venezuelanos não pode ser permanente por causa de um regime obcecado pelo poder".

"Nosso compromisso é simplesmente devolver aos venezuelanos o direito de escolher seu futuro. Esta é a única garantia de mudança e recuperação de nosso país", escreveu González.

Para Imdat Oner, analista político do Instituto Jack D. Gordon, ligado à Universidade Internacional da Flórida, e ex-diplomata turco em Caracas, o anúncio feito pelo governo da Turquia, importante aliada política e comercial do regime de Maduro, causou um "tsunami político" que pode fragmentar a oposição na Venezuela.

"A confiança entre os opositores parece ter sido seriamente prejudicada após este anúncio inesperado", diz Oner. "Isso cria, explicitamente, uma grande cisão dentro da oposição pouco tempo antes das eleições."

No ano passado, os críticos ao regime se aglutinaram em torno da figura de Juan Guaidó, então líder da Assembleia Nacional reconhecido como presidente legítimo da Venezuela por mais de 50 países, incluindo Brasil e Estados Unidos.

Após o anúncio do chanceler turco, entretanto, o gabinete de Guaidó divulgou um comunicado alegando "absoluto desconhecimento sobre as negociações" com Maduro.

"Queremos ser categóricos: estas ações se fizeram sem conhecimento nem autorização do governo interino, da Assembleia Nacional, dos nossos aliados internacionais, nem do acordo de unidade alcançado e anunciado por 27 organizações políticas que reúnem as forças democráticas", diz o texto.

Na avaliação de Oner, ainda é impossível dizer se Capriles e González vão continuar o suposto processo de negociação ou encerrá-lo imediamente após a reação negativa.

"Sabemos apenas que as relações entre os diferentes membros da oposição dentro do MUD [Mesa da Unidade Democrática, coalizão formada por partidos críticos a Maduro] não serão mais as mesmas. Guaidó se sente traído pelos demais opositores."

Embora ainda não se saiba como —e se— as negociações entre Maduro e a oposição vão avançar, a situação pode fornecer indicativos para o futuro político da Venezuela, de acordo com Pedro Brites, vice-coordenador da Escola de Relações Internacionais da FGV/SP.

Para o professor, "o fato demonstra que muitos atores políticos da Venezuela estão insatisfeitos com a espécie de estagnação" que o país vive em um cenário limitado a Guaidó versus Maduro.

"O autoritarismo nos impulsionou a entender a oposição como um bloco único, mas há interesses distintos [entre os opositores] não só do ponto de vista de como pensar na Venezuela pós-Maduro, mas também de como as relações com outros atores internacionais devem ser estabelecidas", explica Brites.

Capriles, por exemplo, é um político mais próximo do centro, com alguma relação com políticas sociais características do chavismo. Guaidó, por sua vez, tem uma base social e política bem distinta, bem mais à direita.

Na avaliação de Brites, ao se abrir para uma possível negociação com agentes externos, Capriles marca uma diferença importante em relação a Guaidó.

"Apesar de ser crítico ao regime Maduro, isso não quer dizer que Capriles adotaria, por exemplo, uma adesão aos EUA de forma tão umbilical como Guaidó defende."

O presidente dos EUA, Donald Trump, após reunião com o líder opositor da Venezuela, Juan Guaidó, na Casa Branca - Mark Wilson/Getty Images - 5.fev.20/AFP

Reforçando o pedido por eleições presidenciais e parlamentares "justas, livres e verificáveis", o comunicado do gabinete de Guaidó também refuta um acordo com o regime de Maduro sem essas condições.

"São públicos e notórios os diversos esforços de mediação de que temos feito parte em busca de soluções políticas e condições eleitorais, mas jamais estaremos dispostos a aceitar acordos eleitorais que não permitam a verdadeira expressão da vontade do povo."

Para a oposição, o pleito marcado para dezembro não pode ser considerado transparente e legítimo. Entre seus argumentos estão o fato de que os novos diretores do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), órgão responsável por supervisionar as eleições venezuelanas, foram nomeados em junho pelo Tribunal Supremo de Justiça (TSJ).

A nomeação contraria a Constituição do país, que determina que o CNE seja formado por nomes indicados pela Assembleia Nacional, hoje com maioria opositora. O TSJ, por sua vez, é considerado alinhado a Maduro.

Entre as decisões mais recentes dos novos diretores do CNE, por exemplo, está a aprovação de um aumento de dois terços no número de assentos parlamentares —de 167 para 277 deputados na Assembleia.

A medida é vista pelos adversários de Maduro como uma manobra para diluir a influência da oposição, já que foi aprovada em julho, quando grande parte dos opositores já ensaiava um boicote às eleições.

​Em seu discurso, o chanceler da Turquia também mencionou as crises em curso na Venezuela, mas defendeu que os opositores abandonem o boicote e participem do pleito.

"Sabemos que alguns membros da oposição e 'alguém' que ainda tem apoio externo não participarão das eleições em hipótese alguma", disse Cavusoglu, em uma provável referência ao apoio americano a Guaidó. "O aumento do número de partidos que participam das eleições é importante para o pluralismo na Assembleia e o futuro da Venezuela."

Para os especialistas ouvidos pela Folha, há outros interesses por trás da interferência da Turquia e o principal deles é que o país quer ser um ator mais importante no cenário geopolítico internacional.

"A Turquia quer fazer parte do jogo para manter seus benefícios na região. Além disso, um papel de mediador potencial eleva a posição da Turquia na política mundial", diz Oner.

Ancara e Caracas têm fortes laços econômicos e políticos, mas os ganhos da Turquia são ameaçados pela instabilidade política venezuelana e pelas sanções unilaterais impostas pelos EUA.

Em 2016, quando o presidente turco sofreu uma tentativa de golpe, o líder venezuelano foi o primeiro a prestar solidariedade a seu governo.

Para Brites, da FGV, a Turquia tenta ocupar um "vácuo de poder".

"Esse movimento da Turquia como mediadora na América Latina é algo que não veríamos há 10 ou 15 anos", diz Brites. "Seria um papel ocupado por países como Brasil ou Argentina."

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