Descrição de chapéu
João Melo

Há uma África que torce por Trump e chorará se ele for derrotado

Republicano não teve política para o continente, e seus líderes mais autoritários acharam isso bom

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João Melo

jornalista e escritor angolano, publicou no Brasil o livro de contos Filhos da Pátria (Record, 2008)

Quais as prováveis consequências para o continente africano das eleições que nesta terça-feira (3) se realizam nos Estados Unidos? O que é possível esperar das relações entre a África e os EUA se Joe Biden ganhar ou Donald Trump for reeleito?

Nos seus quatro anos de mandato, o presidente Trump demonstrou não possuir nenhuma política africana. Na primeira semana de janeiro de 2018, ele disse ao que vinha, quando se referiu aos Estados africanos (e ao Haiti) como “países de merda” (sic).

Outros sinais: não conferiu aos problemas africanos prioridade nenhuma na sua administração; recebeu pouquíssimos líderes africanos na Casa Branca; fez cortes nos programas de ajuda à África; estabeleceu limites aos imigrantes africanos, incluindo os nigerianos, que constituem a maior comunidade africana no país, estando representados em todos os estratos sociais.

As únicas preocupações do governo Trump que têm a ver com o continente africano, durante o seu mandato, foram o terrorismo e a China.

Foi notório o seu esforço para arrastar os países do continente para uma “guerra fria” com o gigante asiático, como se viu em abril deste ano, quando ligou a vários líderes africanos oferecendo ajuda para combater a Covid-19, em troca de distanciamento em relação a Pequim.

Outra exceção, talvez, são as relações com o Egito. Por causa delas, a administração Trump cortou recentemente uma ajuda de US$ 130 milhões (cerca de R$ 780 milhões, no câmbio atual) a um aliado tradicional dos EUA, a Etiópia —país com o qual o Egito está envolvido num complicado processo de negociação relacionado com a construção de uma nova barragem sobre o Nilo.

O corte da ajuda foi considerado pelos etíopes uma “traição”. Mas é de notar que, neste caso, a aproximação dos EUA com o Egito tem a ver com a estratégia de Trump para o Oriente Médio e não com a cooperação com a África.

Quadro com Trump usando vestes vermelhas e douradas, com um chapéu nas mesmas cores, à moda da realeza yorubá, é visto em uma parede de madeira ao lado de um espelho que o reflete
Retrato de Donald Trump em trajes tradicionais usada pelos Yorubá no sul da Nigéria em um restaurante em Lagos, capital do país, no dia da eleição americana - Temilade Adelaja /Reuters

Apesar de tudo isso, há uma África que torce pela reeleição de Donald Trump e que, por certo, chorará se ele for derrotado por Biden. Dois fatores explicam isso: política e religião.

Com efeito, e ao contrário de administrações americanas anteriores (republicanas e democratas), Trump não fez grande pressão sobre os países africanos em termos de democracia e direitos humanos.

Isso, aliado à sua mal escondida simpatia por líderes autoritários, como Kim Jong-un, da Coreia do Norte, bem como aos seus traços autocráticos (ataques à imprensa e aos jornalistas, nepotismo, uso de forças militares para reprimir manifestações e outros), é encarado como uma espécie de luz verde pelas várias lideranças africanas, à direita e à esquerda, para adotarem políticas idênticas.

A hipótese é igualmente explicada pela religião. Na verdade, um grande número de líderes evangélicos africanos, sobretudo, apoia publicamente Trump.

Segundo uma sondagem do Pew Research Pool, em janeiro deste ano, o ainda presidente americano é muito popular em países como Nigéria e Quênia, devido à influência dos principais líderes religiosos, que veem com reservas a agenda liberal, em especial no plano dos costumes, dos democratas americanos.

Significativamente, o alinhamento entre muitos líderes cristãos africanos e o movimento Black Lives Matter, por exemplo, está longe de ser total.

Posto que, por conseguinte, é de prever que, em caso de vitória de Joe Biden, os Estados Unidos voltem a pressionar os diferentes líderes africanos com problemas em matéria de democracia, direitos civis, liberdade de imprensa e eleições (apesar, como temos assistido nas últimas semanas, das confusões das próprias eleições americanas, mas isso são outros quinhentos).

Ao mesmo tempo, a pressão para “maneirar” as relações com a China vai, seguramente, ser mantida.

No plano econômico, não deverá ocorrer nenhuma mudança drástica, a não ser que os EUA se decidam levar a sua rivalidade com a China na África de modo mais efetivo, o que implica abrir os bolsos. O continente tem uma deficiência de base: infraestruturas (estradas, pontes, sistemas de distribuição de água e eletricidade, sem esquecer os recursos humanos).

É aí que os Estados Unidos deverão investir na África, tal como faz a China. Estimular o comércio ou as exportações, assim como ajudar a criar pequenos e médios empresários africanos, por meio de programas como o Agoa (Lei da Oportunidade de Crescimento para a África, pela sigla em inglês), não são, neste momento, a prioridade estratégica da cooperação americana com o continente africano.

O problema é que, neste momento, os próprios EUA também atravessam, de algum modo, uma crise de infraestruturas.

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