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Fato de Trump falhar na tentativa de reverter eleição não diminui dano à democracia

Duas semanas antes do fim de seu mandato, presidente causa dúvidas sobre como deixará a Casa Branca

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Peter Baker
Washington | The New York Times

O esforço incessante do presidente Donald Trump para reverter o resultado da eleição que ele perdeu se tornou o teste de tensão mais sério para a democracia americana em várias gerações, conduzido não por revolucionários de fora decididos a derrubar o sistema, mas pelo próprio líder encarregado de defendê-lo.

Nos 220 anos desde que John Adams, derrotado, entregou a Casa Branca a seu rival, estabelecendo firmemente a transferência pacífica de poder como princípio fundamental, nenhum presidente no cargo que perdeu a eleição tentou se agarrar ao poder rejeitando o Colégio Eleitoral e subvertendo a vontade dos eleitores —até agora.

É um roteiro ao mesmo tempo totalmente impensável, porém temido desde o início do mandato de Trump.

O presidente Donald Trump fala com jornalistas após conferência com membros do exército no Dia de Ação de Graças
O presidente Donald Trump fala com jornalistas após conferência com membros do exército no Dia de Ação de Graças - Andrew Caballero Reynolds - 26.nov.20/AFP

O presidente foi muito além de simplesmente expressar suas queixas ou de criar uma narrativa salvadora para explicar a derrota, como assessores sugeriram em particular a ele nos dias após a votação em 3 de novembro.

Em vez disso, Trump forçou os limites da tradição, da propriedade e da lei para encontrar qualquer maneira possível de se agarrar ao cargo além de seu mandato, que expira em duas semanas.

O fato de que ele quase certamente falhará não diminui o dano que está causando à democracia, ao minar a confiança pública no sistema eleitoral.

Seu telefonema de uma hora no fim de semana para a maior autoridade eleitoral da Geórgia, Brad Raffensperger, pressionando-o a "encontrar" votos suficientes para anular a vitória do presidente eleito, Joe Biden, naquele estado só pôs em destaque o que Trump vem fazendo há semanas.

Ele telefonou aos governadores republicanos da Geórgia e do Arizona para fazê-los intervir. Convocou os líderes republicanos do Legislativo de Michigan à Casa Branca para pressioná-los a alterar os resultados em seu estado. Ele ligou para o presidente republicano da Câmara da Pensilvânia por duas vezes para tentar o mesmo.

Ele e sua equipe aventaram a ideia de retardar a posse de Biden, que está gravada em pedra pela Constituição, e Trump se reuniu com um ex-assessor pedindo-lhe para declarar a lei marcial.

Seu comportamento errático alarmou tanto os militares de que ele poderia tentar usar a força para ficar na Casa Branca que todos os ex-secretários da Defesa vivos —incluindo dois que ele mesmo nomeou— emitiram uma advertência contra o envolvimento das Forças Armadas.

E ele incentivou o vice-presidente Mike Pence e legisladores aliados a fazer o que pudessem para bloquear a declaração formal da vitória de Biden quando o Congresso se reunir nesta quarta-feira (6), tentando transformar um momento cerimonial histórico em um último duelo sobre a eleição. A ideia perturbou até mesmo muitos republicanos veteranos, e certamente deverá fracassar, para frustração do presidente.

"O 'Cáucus da Rendição' do Partido Republicano cairá na infâmia como 'guardiões' fracos e ineficazes de nossa nação, que se dispuseram a aceitar a certificação de números presidenciais fraudulentos!", escreveu Trump no Twitter na segunda (4), rapidamente atraindo uma advertência da rede social.

Ele negou subverter a democracia, postando uma frase que atribuiu ao senador Ron Johnson, de Wisconsin, um de seus aliados republicanos: "Não estamos agindo para frustrar o processo democrático, estamos agindo para protegê-lo".

Mas os esforços de Trump soam familiares a muitos que estudaram os regimes autoritários em países do mundo todo, como os dirigidos pelo presidente Vladimir Putin na Rússia e pelo premiê Viktor Orbán na Hungria.

"A tentativa de Trump de derrubar a eleição e sua tática de pressão com essa finalidade com Brad Raffensperger são um exemplo de como funciona o autoritarismo no século 21", disse Ruth Ben-Ghiat, autora de "Strongmen: From Mussolini to the Present" (homens-fortes: de Mussolini até hoje).

"Os líderes de hoje chegam por meio de eleições e depois manipulam as eleições para continuar no cargo —até que tenham poder suficiente para forçar os órgãos legislativos a mantê-los lá indefinidamente."

As afirmações de Trump de que a eleição foi de certa forma roubada não conquistaram apoio em dezenas de tribunais que ele e seus aliados acionaram, incluindo a Suprema Corte, com três juízes que ele mesmo nomeou.

Autoridades eleitorais republicanas em estados-pêndulo como Raffensperger rejeitaram suas alegações como falsas. Até o procurador-geral (secretário de Justiça) de Trump, William Barr, disse que não viu fraude generalizada que pudesse alterar o resultado da eleição. Mas isso não dissuadiu o presidente.

A fidelidade de Trump ao conceito americano de democracia é discutida há tempo. Ele manifestou admiração por homens-fortes como Putin, Orbán, Xi Jinping, da China, e Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, revelando inveja de sua capacidade de agir decisivamente sem as restrições de um governo democrático.

Ele afirmou em vários momentos que a Constituição "me permite fazer o que eu quiser" com o advogado especial que o investigava e que teria "autoridade total" para ordenar que os estados acatassem seus desejos.

Ele tentou transformar órgãos do governo em instrumentos de poder político, pressionando o Departamento de Justiça a processar seus inimigos e facilitar as coisas a seus amigos. Fez amplo uso de decretos executivos que, para os tribunais, às vezes foram longe demais.

Ele foi condenado ao impeachment pela Câmara em 2019 por abuso de poder, ao pressionar a Ucrânia para ajudá-lo a sujar a reputação de Biden, e depois absolvido pelo Senado no ano passado.

Desde seus primeiros dias de campanha, os críticos sugeriram que ele abrigava tendências autocráticas que levantavam perguntas sobre se um dia subverteria a democracia ou tentaria se manter no poder mesmo que perdesse —perguntas que se tornaram tão intensas que ele se sentiu obrigado a responder: "Não há ninguém menos fascista que Donald Trump", insistiu em 2016.

Mesmo assim, Trump pouco fez para dissipar esses temores nos anos seguintes: sugeriu que a eleição de novembro fosse adiada e se recusou a prometer uma transferência pacífica do poder caso perdesse.

Mesmo agora, apenas duas semanas antes do fim de seu mandato, Trump causa dúvidas sobre como deixará a Casa Branca quando Biden for empossado.

O que ele poderia tentar para impedir isso não está claro, pois aparentemente não tem opções. Mas ainda não está disposto a admitir a realidade de sua situação e seguir o exemplo de John Adams.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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