Polícia invade abrigo de refugiados e detém freira em Roraima

Governo diz que policiais atuavam em operação contra aglomeração; defensoria vê desculpa para deportação sumária de venezuelanos

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São Paulo

Equipes da Polícia Federal, ao lado de agentes civis e militares de Roraima, invadiram nesta quarta-feira (17) um abrigo de refugiados gerido pela Pastoral do Migrante que acolhe cerca de 55 mulheres e crianças venezuelanas em Pacaraima.

A freira que dirige o local, irmã Ana Maria da Silva, 60, foi detida e levada à delegacia para prestar depoimento. Os policiais estavam armados e encapuzados.

“Eu me senti como se fosse a maior traficante de drogas do mundo”, disse à Folha Silva, que divide com outras duas freiras a supervisão do abrigo temporário, ligado à Congregação Irmãs de São José. “Eles entraram aqui sem ordem judicial e me levaram para a delegacia de camburão. Qual é o meu crime, abrigar grávidas e crianças que estariam na rua?”

Venezuelanos dormem em barracas ou em papelões na região da rodoviária internacional de Boa Vista, em Roraima, em 2018.
Venezuelanos dormem em barracas ou em papelões na região da rodoviária internacional de Boa Vista, em Roraima, em 2018 - Marcelo Toledo - 16.out.2018/Folhapress

O governo do estado de Roraima informou que os policiais que entraram no abrigo são ligados à Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (FICCO). Eles afirmam terem ido ao local para dar apoio a uma equipe da Vigilância Sanitária do município, que havia recebido uma denúncia de aglomeração no local, contrariando o decreto municipal vigente devido à pandemia de Covid-19.

Para o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, no entanto, a ação não foi motivada por razões sanitárias. “A forte presença de policiais militares e federais armados, alguns encapuzados, transmite a ideia de que não se tratou de simples inspeção sanitária, mas de ação coordenada com o objetivo de invadir a Casa São José, desativá-la e encaminhar mulheres e crianças para a deportação”, disse o defensor regional de direitos humanos Ronaldo de Almeida Neto.

“Até o momento, ao que se sabe, não se cogitou o ingresso nas instalações da Operação Acolhida [coordenada pelas Forças Armadas], onde centenas de migrantes encontram-se abrigados, para que fosse verificado o cumprimento do decreto municipal.”

Segundo a Polícia Civil, as mulheres e as crianças estavam em situação irregular no Brasil e viviam em condições insalubres. O local foi parcialmente interditado. A princípio, todas seriam deportadas, mas, após atuação da Defensoria Pública da União, foram encaminhadas à Operação Acolhida.

O Ministério Público Federal e a DPU entraram com uma ação pública afirmando que há “a criminalização da prestação de assistência e ajuda humanitária a migrantes” e pedindo o fim de invasões de abrigos refugiados. “Há indícios que levam a crer que o suposto descumprimento de normas sanitárias não passou de um pretexto para a realização de novas deportações sumárias”, diz a ação.

O governo brasileiro está barrando a entrada por terra de qualquer pessoa proveniente da Venezuela, até aqueles que têm familiares no Brasil, desde o início do ano passado.

A portaria atualmente em vigor, a 652 de 25 de janeiro de 2021, determina que estrangeiros de todas as nacionalidades estão proibidos de entrar por terra no Brasil, mas há diversas exceções: imigrantes com residência de caráter definitivo no país, aqueles que têm cônjuge, companheiro, filho ou pai brasileiro, e portadores do Registro Nacional Migratório (o antigo RNE).

As exceções valem para todas as nacionalidades, menos para pessoas vindas da Venezuela, que não podem entrar no Brasil por terra sob nenhuma hipótese.

O estado de Roraima lançou a Operação Horus, no final de fevereiro, com o intuito de resguardar as fronteiras e combater a imigração ilegal de venezuelanos. Segundo a assessoria de imprensa do governo estadual, estão entrando irregularmente cerca de 1.500 venezuelanos por semana, sem exame de saúde. De acordo com o governo, os migrantes irregulares podem sobrecarregar o sistema de saúde do estado em meio à pandemia.

“Essa ocorrência é gravíssima. O governo federal já vem usando a crise sanitária de forma seletiva para impedir a entrada de refugiados, enquanto deixa turistas entrarem. Agora, vimos uma alegada preocupação com saúde para intimidar refugiados e uma organização da sociedade civil”, diz Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos.

Procurada, a Polícia Federal não respondeu a pedidos de entrevista. A Prefeitura de Pacaraima limitou-se a dizer que sua equipe da Vigilância Sanitária foi até o abrigo porque havia descumprimento do decreto municipal que proíbe aglomerações.

Na ação pública, a DPU e o Ministério Público Federal afirmam que, “se não fosse o trabalho prestado por essas entidades, a maior parte dessas pessoas muito provavelmente estaria em situação de rua, sem a possibilidade de adoção de quaisquer medidas preventivas, e portanto muito mais expostas ao contágio e, por conseguinte, a transmitirem a Covid-19”.

A DPU diz que aumentaram os casos de deportação sumária e perseguição de refugiados em Roraima. A portaria em vigor determina que qualquer estrangeiro que entrar no país de forma irregular está “inabilitado” para pedir refúgio. A imensa maioria dos venezuelanos tem poucos recursos e só consegue entrar no Brasil por terra, e não por via aérea, como a portaria permite. Eles acabam entrando irregularmente e, por isso, ficam impedidos de solicitar refúgio e passíveis de deportação.

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