Uruguaios precisamos vigiar a democracia constantemente, diz prefeita de Montevidéu

Para Carolina Cosse, sobrevivência democrática depende da luta por igualdade em diferentes âmbitos

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Buenos Aires

"Não podemos defender o passado de modo cego, nem avançar para o futuro de modo cego", diz Carolina Cosse, 59, sobre as mudanças recentes na arquitetura de Montevidéu, que embora preserve seu patrimônio histórico, também tem derrubado prédios antigos para a construção de novos.

"Temos tudo para ser uma capital do século 21", explica, orgulhosa do local onde nasceu, a engenheira que hoje comanda a cidade.

Um dos nomes de destaque da Frente Ampla, partido de centro-esquerda que esteve 15 anos no poder com Tabaré Vázquez e José "Pepe" Mujica, Cosse foi pré-candidata à Presidência dentro da sigla nas últimas eleições, mas a vaga ficou com Daniel Martínez. A Frente Ampla acabou perdendo esse pleito e cedeu lugar para o retorno do tradicional partido Nacional (blanco), de centro-direita.

A prefeita de Montevidéu, Carolina Cosse
A prefeita de Montevidéu, Carolina Cosse - Divulgação

A prefeita, que assumiu em novembro do ano passado —já em plena pandemia do coronavírus— tem hoje, no entanto, o mais importante cargo entre os dirigentes de seu partido.

Ela defende que, após uma ditadura (1973-1985) que "foi terrível para o Uruguai", é preciso não tomar a democracia como "fato consolidado".

"No momento em que pensarmos assim, vamos estar abrindo espaço para que a democracia retroceda."

Cosse, que foi ministra da Indústria e senadora, conversou com a Folha por videoconferência, da sede da prefeitura de Montevidéu.

A senhora sabe que muitos brasileiros dizem que têm planos de se mudar para Montevidéu? O que acha disso? Nós romantizamos muito a cidade? Sou suspeita para falar. Sou montevideana, e esta é uma cidade muito linda. Como prefeita, meu desafio é que aqui seja construída a beleza das cidades do século 21.

E como seria isso? Temos a obrigação de proteger os edifícios que são patrimônio arquitetônico e cultural da cidade, mas também de construir o futuro, não podemos ficar parados no passado. E também temos de integrar a região rural de Montevidéu com a cidade.

A cidade está triste sem os turistas, sem os estrangeiros. Todos os que nos visitam sempre se referem à simpatia e à hospitalidade dos montevideanos. O que estamos tentando fazer é estimular o turismo interno e incentivar que jovens do interior se hospedem por um preço mais ameno em hotéis da capital, para ajudar a ambos os lados que estão sofrendo com a crise econômica gerada pelo coronavírus.

Também neste conceito de cidade para o século 21, falo não só da cidade fisicamente. Montevidéu também somos todos nós que a vivemos. Como a cidade é vista por nós e por quem nos visita, como é o cheiro do ar que se respira aqui, o que se escuta em suas ruas.

A senhora não é a primeira prefeita mulher de Montevidéu. Ainda assim, os cargos públicos do Uruguai ainda estão dominados por homens. Como vê isso? Quando se trata do patriarcado, a modernidade fica de lado. Olha só, até rimou [ri].

Creio que a democracia é resultado da luta pela igualdade. Não cheguei a esta responsabilidade apenas por mim mesma. O fato de eu estar aqui é fruto do esforço de muitas mulheres que vêm lutando por igualdade no Uruguai. Estou apoiada sobre o ombro de gigantes.

Fiz questão de ter um gabinete paritário e de escolher outros cargos de modo paritário. Se você faz isso, se investe em uma infraestrutura social igualitária, começa a ser natural que as mulheres estejam nas rodas de decisão. A paridade é a avenida e a ponte para atingir uma democracia igualitária.

Há algum plano para o Dia da Mulher deste ano? Estamos num momento difícil da pandemia. Há muitas restrições na cidade para que não haja aglomerações. Mas uma das coisas que vamos lançar no dia 8 é um sistema de implementação de pilares com código QR apenas em praças e monumentos dedicados a mulheres. Quem passar por eles e quiser saber mais sobre esses personagens, escaneia o código e vai parar num link sobre tal personagem feminino.

Vamos fazer isso com outras praças e monumentos depois, mas vamos começar com os que têm nome de mulher. Isso é parte de construir a cidade do futuro, que as pessoas andem por suas ruas sabendo o que aconteceu lá antes e quem caminhou por aquelas ruas antes.

O Uruguai tem sido um exemplo de institucionalidade na região, por exemplo na transição ordenada do poder presidencial, no ano passado, da Frente Ampla para o partido Nacional. Como explica isso? Nossa democracia é uma construção, até agora de sucesso, mas não é algo que se deva ter como um fato consolidado e estático. Nós vivemos uma ditadura [1973-1985] de corte fascista que durou 12 anos e foi terrível para o Uruguai.

Mesmo assim, a população continuou preferindo a democracia e lutou por ela. Só que não podemos simplesmente tomar o que temos e crer que isso basta, que já atingimos nosso objetivo.

No momento em que pensarmos assim, vamos estar abrindo espaço para que a democracia retroceda. E para o enriquecimento e a sobrevivência da democracia é necessário lutar pela igualdade em distintos âmbitos.

Falamos aqui das mulheres, mas houve outros momentos. Por exemplo, a luta pela igualdade no voto universal. Cada passo é uma conquista dessa democracia. Mas não podemos descansar em nenhum minuto.

E a senhora acha que isso ocorreu recentemente? Sim, quando o presidente [Luis] Lacalle Pou assumiu, logo levou ao Congresso um pacote de 500 artigos abrigados na categoria de "lei de urgente consideração", que é uma figura que existe em nossa Constituição apenas para questões de emergência, e não é para ser usada sempre, muito menos com tantos artigos.

A Constituição garante que as "leis de urgente consideração", por terem essa característica emergencial, sejam aprovadas de qualquer maneira depois de determinado prazo. E o novo governo colocou nela todo o seu plano de governo. Sem a possibilidade de que o Legislativo debatesse de modo profundo os pontos.

Para mim, isso danifica a institucionalidade uruguaia, foi uma ferida em nossa democracia. E devemos estar atentos para que seu uso não se generalize.

A democracia é como a saúde. Quando você está com boa saúde, crê que está tudo bem e que nada vai te acontecer. Até que algo te acontece. Por isso é preciso que nós nos cuidemos e que façamos os nossos exames com regularidade. A democracia também funciona assim.

Respondendo a sua pergunta, creio que sim, que o Uruguai é um exemplo de democracia, mas que uruguaios e uruguaias precisam vigiá-la constantemente.

Apesar de suas discordâncias, a relação com Lacalle Pou é boa? Parte da essência democrática é não conceber a política como um clube de amigos, mas sim como uma ferramenta para mudar as coisas. Nesse sentido, a relação é institucional e, portanto, frutífera. Agora na pandemia, estamos trabalhando lado a lado com a autoridade nacional de saúde, seguindo as regras determinadas por eles.

Começamos a vacinação contra o coronavírus na última segunda-feira [1º], e isso foi feito em conjunto entre cidade e nação.

A relação é boa e com intercâmbios muito francos. Mas isso não significa que eu não possa expressar discordância política quando é o caso.

Há uma sensação geral de que a Frente Ampla não vem se renovando, por conta do envelhecimento de suas caras mais conhecidas, como o José "Pepe" Mujica, e a morte de outros, como Tabaré Vázquez. O que o partido deve fazer para se renovar? A Frente Ampla está se renovando naturalmente por meio de sua militância. Seu maior desafio é manter unidas as distintas correntes. Tabaré dizia que o que nos une é um "fino fio de ouro" [na agrupação há comunistas, socialistas, ex-guerrilheiros e social-democratas].

Nós adquirimos uma força conceitual, um conjunto de valores, que é sua maior fortaleza. E é a partir dela que a renovação deve ocorrer.

O Uruguai foi muito bem no início da pandemia, depois a situação se complicou um pouco, mas agora estão vacinando com certa celeridade. O que destacaria da luta contra o coronavírus? A decisão do governo nacional foi boa, a de ter a ciência como referência. Mas creio que houve uma minimização dos outros efeitos da pandemia na questão da pobreza, da solidão, do acompanhamento da situação social.

Se vamos ouvir a ciência para tratar do vírus, temos de ouvir a ciência sobre esses outros temas também. Por exemplo, já havia estudos da Universidade da República, a principal do Uruguai e de onde vêm os médicos que estão assessorando o governo, que mostram que se não mudarmos nosso sistema de manter o equilíbrio fiscal a todo custo, vamos ter novos 100 mil pobres no país.

O governo precisa olhar para o emprego, oferecer benefícios para que empresas não demitam, ter um olhar mais aberto para a economia e a sociedade.

No nível da cidade, além de ajudar na vacinação, no que tem trabalhado? Temos vigiado de perto a mobilidade, que é algo importante para conter o vírus. Além disso, criado opções para que as pessoas não se desloquem, mas não percam o vínculo com amigos, com seus bairros. Estamos promovendo ações cênicas de rua, com pouco público, já que os teatros estão fechados.

E uma preocupação grande é como substituir a presencialidade nos lugares que tínhamos para oferecer aos mais idosos oficinas e atividades, que eram lugares muito concorridos e sabemos que os idosos têm sentindo falta deles.


Raio-X

Carolina Cosse, 59
Engenheira, é prefeita de Montevidéu, já atuou como ministra da Indústria e senadora e integra a Frente Ampla, partido de centro-esquerda pelo qual foi pré-candidata à Presidência do Uruguai na última eleição

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